7 obras excepcionais que estão fora de circulação no Brasil

Não é sem tristeza e despeito que inicio estas linhas, orçando já na primeira frase o que pode ser perdido, senão o que já foi, quando vejo livrarias perdurarem repletas de lixo.

Os culpados? Apontem quem quiserem… a mim é indiferente: há muito que não acredito nem espero justiça no mundo. O homem, bem disse o mestre, já fracassou.

Elencarei aqui, pois, 7 obras excepcionais que estão vergonhosamente fora de circulação no Brasil.

E paciência, amigos, pois o dedo me está carregado de amargor…

1- História da República, de José Maria Bello

Começo por esta História da República, que praticamente não existe. A minha versão, coitada, impressa em 1956, está em estado lamentável de conservação.

Nessa obra José Maria Bello, em escrita lúcida, concisa e penetrante, percorre 65 anos da história brasileira, em intervalo que parte de 1889 a 1954.

Por que a classifico como excepcional?

Primeiramente, pela esmerada forma: o livro está muitíssimo bem escrito e organizado.

Em segundo lugar, pela abrangência: José Maria Bello percorre o período esmiuçando fatores de ordem social, política, econômica e cultural, não apenas apresentando fatos, como é do gosto de alguns historiadores, mas os interpretando, conectando, desenhando um panorama da sociedade e traçando sua evolução no tempo.

Terceiro: pela imparcialidade do autor. Leio na contracapa de minha versão: “O que mais admira no autor, é que, político e militante, contemporâneo de grande parte dos acontecimentos, que descreve, sabe manter-se imparcial e sereno, dando-nos assim uma visão completa de todas as agitações e revoluções que tumultuaram êstes primeiros quarenta anos da República”.

De fato, eu não saberia dizer, mesmo após a leitura, qual a posição política do autor; impressiona-me, inclusive, saber que José Maria Bello foi político e militante.

Mais: segundo meu julgamento, não vejo, em toda a história brasileira, período mais importante que exatamente o abordado na obra (queda do Império e instauração da República) para a compreensão do Brasil recente. Já pelos governantes, já pela sucessão dos fatos, talvez não haja período a ter marcado mais profundamente o caráter da nação — e, ironicamente, talvez não haja período mais ignorado.

Nenhum destes motivos, porém, se compara a este último, que a mim faz com que a obra seja genuinamente uma preciosidade: a proeminência do autor quando em descrevendo o psicológico das principais figuras do período. José Maria Bello faz autênticas pinturas, traça-lhes não só as ações, mas lhes interpreta as motivações, delineia-lhes o caráter e, ainda que diante de personalidades ambíguas, sabe-lhes apontar mérito, valorizá-los o quanto pode, a tentar ser benigno com todos, o que é algo verdadeiramente nobre.

O livro, entretanto, só existe em raríssimas unidades, muitas delas em triste estado — como a minha — e, aparentemente, não há intenção alguma de reimpressão da obra. Uma lástima!

2- Historia geral do Brazil, de Francisco Adolfo de Varnhagen

A vontade, aqui, é de sentar no meio-fio e chorar.

Francisco Adolfo de Varnhagen, distintíssimo Visconde de Porto Seguro, pai e maior expoente da historiografia brasileira, simplesmente, esquecido.

Esta Historia geral do Brazil foi a primeira tentativa sistemática, organizada e que dispôs de recursos abundantes — graças a D. Pedro II — para traçar um panorama histórico da formação da sociedade brasileira.

A seriedade do trabalho e a qualidade da documentação reunida, que custaram a Varnhagen mais de trinta anos de esforço e pesquisa, estão bem evidenciadas no prefácio da segunda edição:

Uma obra desta natureza, em quanto o autor vive e trabalha, nâo chegou ao seu verdadeiro fim; pelo que, de taes obras, nâo se podem fazer estereotypicas sendo os autores vivos. Necessitavamos entretanto, por meio desta ediçâo, alliviar-nos dos grandes cuidados qne nos estava dando a guarda do seu original, sempre receosos de que, por um incendio ou qualquer outro accidente, se perdessem, para o paiz e para o público, os novos fructos recolhidos nos ultimos dezenove annos, — desde 1857, em tantos proximamente como haviamos levado a reunir os elementos para a primeira edição.

Pobre Visconde de Porto Seguro… soubesse a sorte que guardaria o futuro para o trabalho de sua vida…

Creio seja natural que o cidadão comum se não interesse pela própria história, por sua origem, pelas raízes de seu povo, nem por nada que exceda o seu mundinho banal.

Mas aqui, não sendo possível encontrar Varnhagen numa livraria, a questão toma forma acintosa. É uma verdadeira vergonha ver Varnhagen fora de circulação, e mostra ser o Brasil merecedor da relevância cultural nula que dispõe no cenário internacional.

3- História de Dom Pedro II, de Heitor Lyra

Esta obra, já abordada em ocasião anterior, é outra raridade. Talvez a mais rara desta lista, posto haver sebos cobrando até R$ 1.000 pelos três volumes reunidos.

Num país minimamente sério, sabendo-se que o incêndio do Museu Nacional eliminou para sempre grande parte da documentação em que se baseou essa obra, imediatamente seriam tomadas medidas para que lhe houvesse uma reedição ou reimpressão o mais breve possível. O que está em risco, aqui, é um desfalque eterno na história da sociedade brasileira, portanto, o interesse é geral, é uma questão de responsabilidade para com as gerações vindouras e também com o passado.

Entretanto, o Brasil não é um país sério. É um país que, historicamente, avilta as próprias origens de forma mesquinha, indigna e irresponsável.

4- Dificuldades da língua portuguesa, de Manuel Said Ali

Manuel Said Ali foi um enorme intelectual brasileiro. Erudito de primeiríssima linha, conhecedor profundo de grande variedade de línguas e civilizações, partindo do alemão até o grego, latim, sânscrito e sabe-se lá mais quantas, dedicou-se nesta obra a esmiuçar questões escabrosas do nosso idioma.

Este volume Dificuldades da língua portuguesa é interessantíssimo: vemos um especialista percorrendo, conosco, o progresso do idioma, cavando as estranhas da língua a buscar as justificativas para suas anomalias e particularidades, sempre procurando entender as motivações estilísticas (ou expressivas) que causaram a evolução, muitas vezes aparentemente ilógica, de seus vocábulos e construções.

Said Ali coloca-se como que dando lições a gramáticos inflexíveis, desconhecedores da evolução do idioma, da sujeição da gramática à língua falada, iluminando-nos, ademais, em diversas questões que naturalmente suscitam muita dúvida no uso do português.

Consagrado e respeitado por muitos intelectuais, Manuel Said Ali ocupa lugar honroso entre os estudiosos da língua portuguesa. Entretanto, parece não agradar às livrarias e editoras…

5- Gramática metódica da língua portuguesa, de Napoleão Mendes de Almeida

Esta Gramática metódica da língua portuguesa, de Napoleão Mendes de Almeida, é simplesmente a melhor gramática portuguesa disponível no mercado — leia-se: nos sebos. — Digo isso após extensa pesquisa, após contato com diversas outras gramáticas, digamos, mais “atuais”.

Que precisa uma gramática para ser boa?

Em primeiro lugar, de método. O autor precisa saber organizá-la de maneira coerente a expor-lhe a matéria. Os capítulos devem prosseguir como operassem uma continuidade na cabeça do estudante. Caso contrário, a gramática deixará de ser objeto de estudo sistemático, passando a ser tão somente uma ferramenta de consulta. Não é o que Napoleão Mendes de Almeida propõe.

Uma boa gramática, também, depende da capacidade elucidativa do autor, de sua habilidade em expor da maneira mais clara e precisa possível a maleável matéria de que se ocupa. Aqui, Napoleão Mendes de Almeida se destaca indubitavelmente. Lemos suas explicações com atenção e todas as dúvidas parecem sanadas, todos os aspectos das questões parecem abordados e as regras do idioma se nos apresentam claras, simples e concisas.

Outro ponto fundamental: variedade e qualidade de exemplos. Novamente, entre todas as gramáticas que tive contato, nenhuma se aproxima do patamar alcançado nesta Gramática metódica da língua portuguesa. Temos, aqui, exemplos escolhidos a dedo, seja da linguagem popular ou retirados de grandes artistas.

Infelizmente, porém, essa gramática saiu do circuito, inabita as livrarias e salas de aula. Paciência… Mas poderíamos dizer presumível, coerente.

6- O homem que nasceu póstumo, de Mário Ferreira dos Santos

Mário Ferreira dos Santos… Que surpresa me guardou este 2020! Já havia escutado sobre esse autor elogios inúmeros, dizendo tratar-se de um gênio.

Pois leio seu O homem que nasceu póstumo, um estudo sobre a obra de Nietzsche, em seguida enveredando pela sua tradução do Zaratustra (ed. Vozes), em que Mário faz uma profunda análise simbólica da obra através de notas riquíssimas.

Que vi em Mário Ferreira dos Santos? Posso resumir da seguinte maneira: vi, simplesmente, um brasileiro conversando de igual para igual com Nietzsche.

A interpretação de Mário é brilhante, para dizer o mínimo. O conhecimento exposto através de seus comentários, a mim, é algo inédito. E falamos de um autor que publicou cerca de 10 mil páginas!

Entretanto a situação de Mário, ao que parece, é diferente dos outros autores citados nesta lista. Se esse filósofo enorme foi praticamente ignorado em vida, tratando de editar ele mesmo os próprios trabalhos e havendo em torno de si um silêncio absoluto por parte dos intelectuais do país, agora aparentemente foi descoberto, e seus mais de 40 volumes parecem estar sendo reeditados pela excelente É Realizações.

O homem que nasceu póstumo, porém, ainda não foi contemplado com a reedição — que, aliás, é necessária, visto haver na obra alguns erros simplíssimos de edição que lhe arranham a qualidade. — Mas esperamos que seja em breve, pois este trabalho merece edição digna de si e merece — o dedo revolta-se… — estar, no mínimo, disponível para compra nas livrarias.

7- Obra completa, de Raimundo Correia

Fechamos com novo e derradeiro lamento. Façam, amigos, uma lista séria com os maiores poetas da língua portuguesa e lá estará obrigatoriamente o nome de Raimundo Correia, esse gigante maranhense, cofundador da Academia Brasileira de Letras que, hoje, encontra-se praticamente esquecido.

Essa, ao menos, é a minha conclusão, posto não ser possível comprar nenhuma de suas obras em livraria alguma, senão seleções de seus “melhores poemas”.

Os grandes poetas brasileiros costumam ter essa sorte: as editoras, a poupar folhas ou evitar prejuízo, reduzem-lhes as obras aos “melhores poemas”, ou a qualquer coisa que o valha.

A ideia faz sentido: evitar dispêndio de papel e tinta imprimindo somente o que tem valor — ou, se quiserem, o que tem “maior valor”.

Posso às vezes parecer ingênuo, mas aposto como essa brilhante ideia não saiu da cabeça de algum marqueteiro experimentado! “Melhores” no título — deve ter apontado na mente do gênio — impulsionará as “conversões”.

Então vemos a literatura, a arte, a elevação humana, os esforços de uma vida inteira, subjugados todos ao mais rasteiro utilitarismo. Os artistas, mortos, já não podem protestar. E assim se dissipam os títulos das obras, levando consigo parte de sua identidade… — talvez, ao menos, para algum lugar melhor…

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História da literatura ocidental, de Otto Maria Carpeaux

História da literatura ocidental, esse colosso de quase 3 mil páginas, é, simplesmente, um monumento imortal erigido em língua portuguesa e publicado no Brasil. O austríaco Otto Maria Carpeaux, que adotou nossa pátria e pôs-se a aprender nosso idioma já na meia-idade, deu às letras nacionais o que brasileiro algum jamais dará. Pode-se dizer, sem medo do erro, que foi Carpeaux o maior erudito brasileiro de todos os tempos. E, se temos no jardim esse colosso único, impressiona que nós, brasileiros, não demos o menor valor. Palavras de Carpeaux que prefaciam a primeira edição da obra dão ideia da magnitude desta História da literatura ocidental:

Estudaram-se todas as literaturas românicas e germânicas da Europa e seus ramos na América do Norte e do Sul; as eslavas e outras da Europa oriental; e, naturalmente, as literaturas grega e neogrega. (…) Foram estudados, em suma, mais de 8.000 autores. Mas a obra não tem pretensão nenhuma de ser um dicionário bibliográfico completo.

Modéstia… O estudo empreendido por Otto Maria Carpeaux e publicado em 1959 é único a nível mundial. É o que diz, também, Olavo de Carvalho, em excelente ensaio que prefacia a edição da Topbooks de Ensaios reunidos, outra obra de Carpeaux:

O homem de quem estamos falando é autor da única história da literatura jamais escrita na qual a sucessão das idéias e criações literárias no Ocidente, de Hesíodo a Valéry, aparece como um movimento contínuo que, por baixo da variedade desnorteante das suas manifestações, não perde jamais a unidade de sentido.

Que dizer? Penso em Carpeaux e me espanta o silêncio. Não se fala em Carpeaux, não se comenta sobre o homem de maior relevância na crítica literária nacional. Hoje, já estamos em distância que nos permite o juízo imparcial: Carpeaux, dentre todos os críticos, foi quem prestou o maior serviço às letras nacionais. Nada em português se compara à sua História da literatura ocidental.

História da literatura ocidental é capaz de dotar qualquer estudante de um conhecimento abrangente e preciso sobre os principais autores de mais de vinte séculos de literatura. É capaz de guiar um plano de estudos por décadas. E engana-se quem pensa que Carpeaux tão somente apresenta os autores e insere-os no contexto em que produziram suas obras; Carpeaux critica, transita com extrema argúcia por entre as correntes de pensamento mais diversas, pelos variados estilos e variadas concepções estéticas, analisa biografias e traça a evolução dos autores, insere as obras no contexto em que foram produzidas mostrando-nos, por fim, o peso histórico de cada autor segundo o seu julgamento.

Mas onde estão, por exemplo, as traduções dessa obra imensa? Longe, muito longe… Digo e pareço sonhar. Carpeaux não aparenta sequer consolidado no Brasil. Não atraiu sequer o interesse de biógrafos. Pergunto: o que estamos esperando? que surja alguém mais relevante a escrever sob o sol brasileiro? alguém de cultura superior? Ah, claro… então esperaremos… esperaremos, talvez, por muitos séculos, talvez para todo o sempre…

Otto Maria Carpeaux foi um intelectual enorme. Deu ao Brasil o que nunca tivemos, o que sempre nos faltou. Será que podemos, hoje, prescindir de Carpeaux? virar as costas à sua História da literatura ocidental?

É uma escolha. Contudo está, diante de nós e muito bem construída, a ponte para integrar nossa literatura a todas as culturas de todas as épocas. Cabe-nos, porém, a decisão de atravessá-la — ou, é claro, continuar como somos: irrelevantes no cenário mundial.

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Ortodoxia, de G. K. Chesterton

Entupo-me a misantropia de quitutes e ela, em resposta, engorda. Assim completo mais um ano sozinho, sorrindo, e desta vez com um volume de Chesterton nas mãos.

Chesterton… Tivesse-o lido aos vinte, talvez o teria idolatrado… Mas assim são as coisas e bom que assim sejam! Eis que, atento às páginas de Ortodoxia, irrito-me. Em seguida, porém, exalto-me. E o resumo de meu juízo, após a calmaria das reflexões, é este: grande leitura! Pois é isso o que deixam as grandes leituras: fortes impressões.

Então vamos, agora, esmiuçá-las, expor o que me agitou nesta grande obra. Chesterton começa:

The men who really believe in themselves are all in lunatic asylums. (…) If you consulted your business experience instead of your ugly individualistic philosophy, you would know that believing in himself is one of the commonest signs of a rotter. Actors who can’t act believe in themselves; and debtors who won’t pay. It would be much truer to say that a man will certainly fail, because he believes in himself. Complete self-confidence is not merely a sin: complete self-confidence is a weakness.

Parecem palavras retiradas dos meus pensamentos. Entretanto, faço a nota: quão distante está Chesterton dos cristãos atuais! A modernidade — cristãos inclusos — está contaminada até a unha deste sentimento estúpido denominado por Chesterton como self-confidence. Quando a sabedoria, queiram ou não, começa exatamente em self-distrust.

Há, hoje, uma confiança difusa, seja no homem, seja no futuro, que nos cristãos se manifesta através da esperança indiscriminada. O cristão comum de nossos dias não hesita, nem por um único segundo, a respeito do que o futuro lhe reserva ou a respeito das próprias possibilidades. O que não é sinal senão de sua absolute weakness

Outro trecho virtuoso:

Imagination does not breed insanity. Exactly what does breed insanity is reason. Poets do not go mad; but chessplayers do. Mathematicians go mad, and cashiers; but creative artists very seldom.

Que é que conduz à insanidade? A obsessão em encontrar todas as respostas, em possuir controle absoluto sobre o meio. Por isso um matemático, um cientista, muitas vezes acaba incapaz de perceber-lhe a própria insignificância, a própria vulnerabilidade, a limitação de seus meios de ação e, considerando-se capaz de decifrar todas as variáveis, enlouquece, colapsa, pois as possibilidades humanas são, se muito, simplesmente limitadas.

Chesterton prossegue, em franco ataque ao positivismo moderno:

In so far as religion is gone, reason is going. For they are both of the same primary authoritative kind. They are both methods of proof which cannot themselves be proved. And in the act of destroying the idea of Divine authority we have largely destroyed the idea of that human authority by which we do a long-division sum.

Agrada-me essa franqueza. Chesterton ainda ressalta, em sua famigerada sentença: o problema na negação de Deus é o que se coloca em seu lugar. Fatalmente, crer nas possibilidades humanas é de uma infantilidade sem-par.

Pois bem. Eis que Chesterton começa a irritar-me. Já me indisponho com meia palavra de demagogia, meio verbo de incentivo à ação política… E se cultivo a resignação e o silêncio, então Chesterton pinta-me, subitamente, como o mais desprezível dos seres.

E vejo em Ortodoxia o que a mim, sem dúvida, é a face mais detestável dos cristãos: o maniqueísmo. Assim como sempre me causa fastio escutar de alguém o porquê de sua ideia ser a mais sensata do universo, passo a enfastiar-me da arrogância das palavras de Chesterton.

Ele começa atacando os estoicos:

Marcus Aurelius is the most intolerable of human types. He is an unselfish egoist. An unselfish egoist is a man who has pride without the excuse of passion.

Se não são como nós, pois como são odientos! E Chesterton, guiado pelas próprias convicções, classifica como os mais detestáveis aqueles que se negam a agir, a lutar, a participar ativamente da sociedade.

O que Chesterton faz, sem rodeios, é classificar a mim mesmo como um sujeito intolerável — justo no meu aniversário?… — E percebo que é impossível a nossa compatibilidade: Chesterton quer me convencer de sua razão e impelir-me à ação; eu não tenho o menor interesse em convencê-lo de nada e só quero um pouco de paz, distância e silêncio.

Chego a fantasiar, por um momento, o seguinte subtítulo para a obra: “Why me and everyone who is like me are the best human beings on the face of the earth and why everyone else who is not like me and does not think like me are intolerable and inferior”. E ouço a irônica e insuportável réplica: “Exactly. Do you have a better way to defend your beliefs?“.

Chesterton prossegue:

On the other side our idealist pessimists were represented by the old remnant of the Stoics. Marcus Aurelius and his friends had really given up the idea of any god in the universe and looked only to the god within. They had no hope of any virtue in nature, and hardly any hope of any virtue in society. They had not enough interest in the outer world really to wreck or revolutionise it. They did not love the city enough to set fire to it. Thus the ancient world was exactly in our own desolate dilemma. The only people who really enjoyed this world were busy breaking it up; and the virtuous people did not care enough about them to knock them down. In this dilemma (the same as ours) Christianity suddenly stepped in and offered a singular answer, which the world eventually accepted as THE answer. It was the answer then, and I think it is the answer now.

Ignoremos o justo mérito concedido ao surgimento do cristianismo. A partir deste ponto no livro, Chesterton passa a incentivar a ação, justificando, inclusive, a “violência” cristã. E o faz exaltando a plebe, em atitude que, novamente, traça uma clara linha entre nós. Simplesmente não suporto a convivência com alguém que me exige concordância integral.

Novas pedras atiradas contra mim:

By insisting specially on the immanence of God we get introspection, self-isolation, quietism, social indifference — Tibet. By insisting specially on the transcendence of God we get wonder, curiosity, moral and political adventure, righteous indignation — Christendom. Insisting that God is inside man, man is always inside himself. By insisting that God transcends man, man has transcended himself.

Moral and political adventure, righteous indignation… Quantos cadáveres seriam poupados sem semelhantes exaltações… Mas não prossigo: abstenho-me de convencer Chesterton. Sinto-me absolutamente desmotivado após vê-lo traçar o povo como a representação da prudência e da sabedoria.

A mim, o menor populismo já é repugnante. Exaltar a virtude popular é comprar a aprovação às custas da independência. Mas não taxo Chesterton de falso ou ardiloso; seria extremamente injusto. Entretanto, neste ponto, vejo mais prudência em Zaratustra:

É no deserto que sempre viveram os verídicos, os espíritos livres, senhores do deserto; mas nas cidades, habitam os sábios bem nutridos e célebres – os animais de trato.

Pois são eles que puxam sempre, como os asnos, as carretas
do povo.

Oportuno tocar em Nietzsche. Chesterton faz o seguinte juízo do poeta:

Nietzsche is truly a very timid thinker. He does not really know in the least what sort of man he wants evolution to produce. And if he does not know, certainly the ordinary evolutionists, who talk about things being “higher”, do not know either.

Minha observação: Nietzsche sabia exatamente qual tipo de homem desejava que fosse produzido; e esse homem é, em inúmeros aspectos, imensamente superior ao que seria o exemplo de wise man para Chesterton. Entretanto, é verdade, o homem de Nietzsche jamais será produzido em massa, pois esse homem é justamente o inverso do homem de rebanho.

Mas basta de objeções e debate! Este artigo já exige um ponto final. Assim, entremos com as conclusões.

Rege-me um princípio simplíssimo toda vez que efetuo um julgamento consciente de valor: considero o valor de algo como o saldo quando lhe contrapostas as faces positivas e negativas, exatamente como numa balança. Busco, sempre que possível, valorizar o lado positivo, pois a balança, mesmo que penda ao lado não desejado, normalmente me oferece algo que me exija o reconhecimento.

Assim, não hesito quanto a Chesterton: a exímia escrita, o humor de qualidade e a lucidez diante das grandes questões cristãs me não permitem o julgamento injusto. Falo de alguém franco e imenso.

Chesterton, porém, julga-me intolerável. Mas não sou como Chesterton: a ele guardarei espaço honroso entre os autores de minha predileção.

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O meu bisavô materno

Cá estamos novamente: diante da tela em branco, pensando na vida, sorrindo e petiscando amendoins. Sei que o tema do dia não me agrada; ou melhor, desagrada-me profundamente. Mas tenho duas opções: calar-me ou escrever. A segunda resguarda o silêncio e ajuda-me contra o tédio. Vamos dela.

Há uma reflexão filosófica que me importuna com regularidade espantosa, e pode resumir-se na seguinte pergunta: “Qual o nome do meu bisavô materno?”. Sempre me ocorre da mesma maneira. De início, a pergunta toma-me a mente; eu percebo e silencio. Então, recusando-me a respondê-la — e eu já sei que sei a resposta — tento pensar em outra coisa, qualquer coisa. Mas me volta a indagação, renitente e insuportável. Vejo-me obrigado a replicar o óbvio: “Eu não sei”.

Tenho de admitir: a reflexão é-me de grande valia quando me vejo a mente dar as mãos à estupidez, pensando minha vida ter alguma importância. Minha mente também é cínica… Estou às vezes a julgar: “Isso pode ser útil a alguém”, mas ela vem e interpela-me: “E como é mesmo o nome do seu bisavô materno?”. Todas as vezes, respondo em espanto: “Eu não sei”.

E a reflexão prossegue, sempre, da mesmíssima maneira. Busco a resposta, não encontro. Penso: “Não é possível!”. E forço a memória, procurando contatos comuns: “Alguém já deve ter-me dito…”. Insisto até desistir, quando me vem um lampejo: “O nome de meu bisavô eu não sei, mas certamente está na ponta da língua o nome de minha bisavó materna!”. Faço-me a nova pergunta: “Qual o nome de minha bisavó materna?”. A resposta tarda, mas vem óbvia e idêntica: “Eu não sei”.

Então começo a torturar-me: “Quer saber, preciso de um cigarro!”. Levanto-me da cadeira: “Cigarro faz bem para a memória!”. Vou à janela e ponho-me a fumar. É impossível que eu não saiba o nome de meus bisavós maternos! Devo estar com algum problema, e o cigarro ajudar-me-á a solvê-lo. Fumo observando a fumaça: sou fascinado pela fumaça. Ela brota, vigorosa e espessa, da ponta do cigarro; sobe ao céu como que dançando; mas, antes que a dança possa entreter, possa ensaiar algum ritmo, subitamente a fumaça se esvai, perde-se, não deixando de si nenhum vestígio.

O cigarro faz efeito; tenho uma nova ideia: “Certamente o problema está em minha família materna!”. Articulo nova pergunta, animado, a esperar resultado diferente: “Qual o nome de meu bisavô paterno?”. Reflito. Em poucos segundos, perco o sorriso da face. O cérebro ainda trabalha, esforçado. Pois me ponho inquieto, a querer negar a resposta óbvia. Mastigo amendoins e penso: “Bisavô é o pai do meu avô, ou da minha avó. Dos dois, um eu acerto!”. Mas a resposta é a mesma, rígida e impenetrável: “Eu não sei”.

Começo a meditar que é uma questão de honra: preciso saber se descendo de padre ou ladrão! Mas forço a memória e me não lembro de nada, nenhum resquício de parente dizer Fulano de Tal ser estivador, marinheiro, padre ou dono de bordel. E aí está tudo: eu não sei o nome dos meus bisavós, simplesmente não sei e não há solução.

Irritado, alvejo-me a mente a pedradas: “Por que sempre a mesma pergunta? Por que a insistência?”. Mas sei que continuarei a perguntar-me, em obtusidade córnea, a ver se algum dia encontro resposta diferente. Não encontrarei.

Finalmente suspiro, impotente, perdendo qualquer ilusão. Já não há amendoins e reflito, impedido de mastigar: “Qual, então, a razão de tudo isso?”. A conclusão é óbvia, e também sempre a mesma. Apego-me aos cacos: “Que me valha a consciência, pois, de mim, não sobrará uma única e escassa palavra”.

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