Crítica: O poder da autorresponsabilidade, de Paulo Vieira

Mal começo estas linhas e sinto o dedo tremer, hesitante em digitar. Pergunto à minha consciência: “Escrevo?” — e ela responde-me: “Não!”. Levanto-me, deixo a mesa e vou à janela, a refletir. A consciência pesa-me, censura-me renitentemente. Estou pensando: “Se eu não quiser, não escrevo: o texto ainda está em branco”. Estaco. O que julgo acertado? Escrever. Há, para mim, algum tema proibido? Não. Ora, então devo escrever… Decido voltar. Sento-me novamente: vou escrever! Escreverei! Mas a consciência põe-se a gritar, de joelhos e desesperada: “Não faça isso! Não escreva esse texto!”. Debalde… é impossível! Sou teimoso e vou escrever.

Assim, é com imensa alegria que inauguro neste sítio um método inovador de crítica literária: criticarei um livro que não li. “Como?”, irrompe a pertinente pergunta. Mas não há segredo no processo: não lerei; então darei minha sincera opinião. Vejamos se o método é ou não digno de apreço.

Abro uma lista com os livros mais lidos no Brasil em 2019. Instintivamente, meu olho crava em Paulo Vieira, O poder da autorresponsabilidade: A ferramenta comprovada que gera alta performance e resultados em pouco tempo. A extensão do título me não permitiu registrar em tempo: fui alvo de duas agressões visuais. A primeira, ao lado do nome do autor: lê-se PhD; a segunda, pouco abaixo, onde se lê: “O homem que impactou mais de 20 milhões de pessoas”.

Crispo na cadeira. E confesso, sinceramente, meu desalento. Creio mais sensato desistir da empreitada. Criticarei um PhD sem lhe ler a obra? Tenho de ser um imbecil para atrever-me a semelhante disparate… Por que, primeiro, não trato de buscar meu PhD? Minha cara não queima? Vocês dão risadas, mas minha obsessão impele-me a abrir a prévia gratuita do livro disponível na Amazon. Tomo um susto; percebo que, ao clicar na imagem da capa, Paulo Vieira impacta 20 milhões de pessoas adicionais: agora estou diante do “homem que impactou mais de 40 milhões de pessoas”.

Ponho-me a analisar a primeira página. “Autorresponsabilidade”, “receita infalível”, “resultados em pouco tempo”… leio essas coisas e penso em Voltaire. Paulo Vieira tenta incentivar-me: “Desperte todo o poder que existe em você”, mas não consigo senão pensar no Eclesiastes. Será que o Paulo Vieira leu o Eclesiastes? Vasculhando o sumário, cravo a vista no terceiro capítulo: “O caminho universal do progresso humano”. Súbito, ouço Voltaire a gritar: “Ô malheureux mortels! ô terre déplorable!“.

E imagino, por um capricho, Pangloss a palestrar com Paulo Vieira: “Oh, doutor Paulo Vieira! Como tudo é tão simples! O método do senhor é um verdadeiro balde de luz! Estou a imaginar quão melhor seria o mundo caso tivéssemos, eu e o senhor, nascido no princípio dos tempos: Roma certamente não pegaria fogo; Lucano se não haveria matado; Édipo não lhe haveria matado o pai e… Doutor Paulo Vieira! creio que esteja dizendo tolices. O que ocorreu haveria de ocorrer e tudo está tão perfeitamente bom qual deveria estar…”.

Continuo, congelado, frente ao sumário do livro. Sei que não posso prosseguir. Então me vem a reflexão: onde é que está o problema? Por que as pessoas compram Paulo Vieira ao invés de Shakespeare? Pois percebo minha profunda hipocrisia: eu mesmo já comprei paulos vieiras, e sei exatamente o que espera alguém que compra um paulo vieira. Sei também que, ao fechar um manual infalível, imediatamente se faz necessário um manual adicional.

Estamos fazendo crítica: devo eu, pois, tocar fogo em Paulo Vieira? Penso que não; o problema não está em Paulo Vieira, nem em quem compra Paulo Vieira. O problema, em verdade, está na estupidez do livro, que promete uma absoluta impossibilidade: transformar o ser humano — balda engenhoca — em uma máquina de alta performance.

Então me imagino, alegre, entrando numa livraria. Procuro pelos best-sellers, e dou-me com a obra de Paulo Vieira. Compro um volume e enveredo de volta à minha residência. Satisfeito da escolha, vejo-me, no caminho, determinado a tornar-me uma pessoa melhor. Chego em casa, fecho a porta e dirijo-me ao banheiro, folheando a nova aquisição. Subitamente, sinto latejar um profundo desconforto. Estaco, sentindo a decepção a pulsar. Então alço a vista: vejo um cínico incurável no espelho. Torno a mirar o livro, em desalento: “Autorresponsabilidade… isso não é para mim; em minha casa, o lugar desse livro é na lata de lixo”. Vou ao quarto e procuro por um volume de Voltaire.

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