Se procederem as didáticas explicações deste curioso Emanuel Swedenborg, não serei aceito no céu. Não serei e adiciono: em hipótese nenhuma. Se não o céu, então… Mas reflito: necessariamente tenho de ser aceito nalgum lugar? Sou forçado a ansiar por aceitação? Estou, desde o princípio, condenado a suplicar que me aceitem? Se é assim, está excluída a possibilidade da rejeição plena: alguém terá de me aceitar — e eu, naturalmente, também terei de aceitar quem me aceite: todos privados da volição, condenados a juntarem-se à força num grupo. Desalentador…
Categoria: Casos
Utilitarismo
Era violinista. Desde pequeno, apaixonado pela música. O primeiro violino foi dado a Dutra pelo pai aos sete anos de idade; o menino, eternamente encantado, jamais o largou. Na escola, foi um recluso; de perfil introvertido, detestava esportes. Seu único amigo era Fábio que, devido à influência do pequeno músico, passou a interessar-se também pela arte sonora, escolhendo como seu instrumento o teclado.
Oito anos depois, a amizade perdurava, o teclado tornou-se um piano e os amigos conheceram outros músicos. Visualmente, ambos pareciam bons eremitas. Da mesa de um bar, vez ou outra sujeitos atiravam-lhes comentários do tipo: “Esses aí nunca beijaram na boca”. E passavam os dias assim, num círculo social isolado, o que era bastante natural, uma vez que a música clássica, ao brasileiro comum, não passa de um inseto excêntrico.
Construíram os amigos, a partir dos vinte anos, o hábito de se reunirem, aos sábados, para exercitar a arte. A banda era composta de outro violino e um violoncelo. Aquele era, para todos, o momento mais prazeroso da semana. Um deles, de boa condição financeira, dedicava-se em tempo integral aos estudos: cursava música e aprofundava-se progressivamente no seu instrumento, o violoncelo, tratando de palestrar teoria e estimular os demais, que desperdiçavam seus dias correndo qual ratos atrás de dinheiro. Vez ou outra iam então à Orquestra Filarmônica, o alento da arte em Belo Horizonte, e saiam sempre encantados, profundamente impressionados e motivados a suportar outra semana de trabalho. A verdade é que todos sonhavam viver de música, conquanto jamais conseguiram.
Dutra, por exemplo, quando contava vinte e oito anos, trabalhava em uma empresa de telecomunicações. Entrara aos dezoito como estagiário e subira de cargo aos vinte, tornando-se técnico em eletrônica, função que mantinha. Nesta época, todos os amigos continuavam da mesma forma: cada qual exercendo uma função totalmente alheia à música durante o dia, exceto João, que prosseguira em seus estudos e vivia da renda dos pais. Ainda assim, mantinham as reuniões semanais, que raramente falhavam.
Oportunidade
Numa sexta-feira, o chefe de Dutra o chamou à sua sala. Eram amigos. Sentaram-se, e Rui atirou ao subalterno: a unidade da empresa em São Paulo precisava de um gerente, e ele gostaria de indicar Dutra como agradecimento pelos serviços prestados. O novo ordenado seria duas vezes e meia maior. Quase estourando de alegria, Dutra sentiu vontade de beijar o chefe. Conteve-se, e convocou os amigos da banda a comemorar — em linguagem mineira, entupir-se de cerveja.
Saindo do trabalho, foi direto a um bar que apreciava. Chegaram João e Fábio, Paulo viajava. Dutra anunciou-lhes a boa-nova. Os amigos felicitaram-no.
— Em São Paulo? — perguntou Fábio, atinando finalmente.
— Pois é, ganharei três vezes mais.
A amizade de ambos contava quinze anos.
— E como fica a banda?
A banda contava oito.
— Que é isso, Binho. Vou ganhar o triplo! — tentou justificar Dutra.
Calaram-se. Rebentou a patente decepção. Para eles, só a música justificava a vida; o resto sempre foi questão de sobrevivência. Trabalhavam para poder tocar ao sábado, estudavam para que não faltasse trabalho.
A comemoração, sumariamente, foi triste. Houve choro de todas as partes, não dizendo Fábio e João palavra de censura ao amigo, que levou quase uma década construindo-lhe a carreira profissional. Entretanto, no final da noite, Dutra solicitou-lhes a opinião:
— Eu ainda não aceitei. Mas não posso recusar… é pra mudar definitivamente o meu padrão de vida — articulou.
Quando Fábio admoestou-o pela primeira vez:
— Olha, Dutra: eu seria um pouco menos utilitário, porque… bom… porque utilitariamente o homem nasce pra morrer.
Os amigos olharam-se em profundo dissabor.
Decisão e consequência
Dutra aceitou a proposta. Quinze anos depois, já não havia banda. Com Fábio, manteve o contato frequente — conquanto arrefecido pela distância — conversando semanalmente através de mensagens ou ligações. Fábio casara-se, ocasião única em que Dutra voltou a Belo Horizonte durante todo esse tempo; de resto, trabalhava feito um cão. Paulo, o outro violinista, morrera junto da família num acidente de trânsito; a ocasião foi plangente, mas Dutra não pôde comparecer ao velório, posto estivesse em viagem a trabalho. João ainda tocava, sozinho, nunca conseguindo efetivar carreira como músico; permaneceu solteiro.
Tragédia
Era uma quarta-feira nublada em São Paulo. Fazia muito frio desde o início da semana. Dutra, após uma jornada estressante, finda em duas horas de congestionamento no trânsito, chegou em casa e sentiu o telefone vibrar. Era João, com quem não falava há três anos. De pé, mirando a cidade pela janela, atendeu:
— Quanto tempo, meu amigo!
E sussurrando, em voz monótona, João levou trinta segundos para anunciar-lhe: Fábio, na manhã daquele dia, falecera, vítima de latrocínio. O assaltante levara-lhe o celular, o carro, e cravara-lhe no peito três balas letais. Dutra havia conversado com o amigo na véspera. Lívido, de olhos esbugalhados, via a fumaça que pairava sobre os prédios. Esqueceu-se de despedir; sentiu o celular deslizar-lhe sobre os dedos e chocar-se contra o chão.
Reflexos
O velório seria no dia ulterior. Trinta minutos após a notícia, Dutra teve, pela primeira vez na vida, resolução quanto ao seu destino. Ligou ao chefe e pediu, não a licença, mas a demissão da empresa. Partiu a Belo Horizonte com a roupa do corpo e a obsessão: “Meu melhor amigo morreu”.
Durante o trajeto, desligou o celular. Não disse palavra por horas. No táxi, de casa ao aeroporto, pôs-se a reparar as ruas, as construções, e percebeu como a cidade era feia. Via os prédios, quadrados, que pareciam blocos cinzentos empilhados, sujos, vários deles chapiscados, cingidos de cercas, arames farpados, ornados por vândalos e marqueteiros achavascados. “Tudo isso é horroroso!” — pensava, enquanto reparava o estrago visual que fazia o emaranhado de fios que pendia dos postes.
Em Belo Horizonte, continuava a observar, do aeroporto de Confins à cidade, as favelas que marginavam a via, com muros mal-acabados, sem pintura, erguidos visando exclusivamente a praticidade e baixo custo; ruelas de terra, roupas pendidas à vista, telhados metálicos que lhes pareciam jogados nos lugares. “Isso é o utilitarismo consumado” — concluiu.
Velório
O velório do amigo foi o dia mais triste da vida de Dutra. A imagem do pianista com as mãos sobre o peito perfurado jamais lhe saiu da memória. A face alva e pálida de Fábio era a representação do que para ele ficou sendo a partir de então o sentido da vida. Três balas no peito por um celular e um carro: foi esse o fim do músico e eterno amigo. Frente ao cadáver, chorou alto, de joelhos, vicejando a dor que lhe marcara a alma para sempre.
“O útil desagrada à vista. Só o fútil embeleza a vida. Utilitariamente o homem nasce para morrer” — foi o que pediu para inscreverem na lápide da sepultura. Não na de Fábio; na própria.
(Este conto está disponível em Casos)