Primeiro, o especialista; depois, o amador. Vamos ver alguns dos comentários de Otto Maria Carpeaux sobre As viagens de Guliver, de Jonathan Swift:
Jonathan Swift — clérigo humanista, fiel-infiel à Igreja da qual era sacerdote — é um dos maiores satíricos da literatura universal, talvez o maior de todos. Gulliver’s Travels é o livro mais cruel que existe. As atividades febris e inúteis dos anões de Lilliput ridicularizam a vida parlamentar na Inglaterra do século XVIII e em todos os países e épocas de política constitucional e profissional. Esboçando esse panorama político, Swift lembrou-se dos seus tempos de panfletário a serviço do partido conservador, dos tories; é uma sátira mordaz contra os whigs. Mas logo depois, Swift descreve o regime patriarcal no reino dos gigantes de Brobdingnag; e este não é nada melhor. Ao contrário, o tamanho dos gigantes torna grotescamente enormes todos os pormenores, isto é, as infâmias das “classes conservadoras”. Tampouco são melhores os intelectuais que, no país de Laputa, vegetam como imbecis completos. Na última parte, o elogio dos Houyhnhms, isto é, dos cavalos, mais nobres e mais inteligentes que os homens, é a condenação absoluta do gênero humano in totum. Enfim, o episódio dos Struldbrugs, que devem ao progresso científico a imortalidade da vida, não escapando, porém às doenças, fraquezas e senilidade da extrema velhice, e que não conseguem morrer, já condena a própria vida. As inúmeras digressões espirituosas e mordazes — a descrição dos horrores da guerra como se fossem as coisas mais naturais do mundo, o escárnio dos dogmas e ritos cristãos, incrível na boca de um alto dignatário da Igreja — revelam em Swift o representante mais radical do racionalismo na Ilustração; nem sequer Voltaire ousou tanto.
Aí estão as lúcidas palavras de Carpeaux — e há muito mais delas sobre Swift em História da Literatura Ocidental (vol. 2). — De minha parte, digo o seguinte: As viagens de Gulliver foi, talvez, o livro que mais me marcou. Sempre volto a ele, releio passagens, e tenho-o pulsando em mim. Quando escrevo e, por um momento, creio exagerar em meus julgamentos, penso em Swift. Lembro-me que Nelson Rodrigues disse uma vez que a ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. Segundo esse raciocínio, poucos livros purificam tanto como As viagens de Gulliver; julgamento de que compartilho. A “grande alma, nobre e ferida” de Swift — ainda usando palavras de Carpeaux — é capaz de impregnar-nos de um profundo desconforto e repulsa para com nossa natureza; porém, sem dúvida, acaba tornando-nos pessoas melhores.
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