Outra de Farias Brito:
Numa coisa andaram acertadamente os psicólogos modernos no qualificativo que deram à sua ciência de “Psicologia sem alma”. Realmente a psicologia dos tratados, feita nos laboratórios de experimentação, com suas descrições anátomo-fisiológicas, com seus quadros demonstrativos, com suas tentativas de medida das sensações e da duração dos atos psíquicos etc., é, não há como negá-lo, e forçoso é reconhecer que a expressão é justa e precisa, “uma Psicologia sem alma”. E isto equivale a dizer uma Psicologia morta; o que significa: uma Psicologia que nos não instrui, nem edifica, que nada nos diz sobre a verdadeira significação da energia que reside em nós: dinâmica puramente exterior, inconsciente e fatal, que em vão se esforça por explicar o espírito em função da matéria, deixando-nos sempre no vazio e no escuro… Muito mais instrutiva é, decerto, a Psicologia dos poetas e dos romancistas, que jogam, é verdade, com personagens fantásticas, mas inspirados na observação dos fatos e criados pela imaginação sob a pressão mesma da vida, senão reais, pelo menos possíveis, sendo de notar que é sempre das próprias paixões, das próprias lutas e sofrimentos, dos próprios sonhos e aspirações, que nos dá o artista, em seus personagens, a descrição viva e palpitante.
É curioso notar que este trecho, que serve de abertura a O mundo interior, data de 1914, anos antes da expansão avassaladora da tal psicologia sem alma, que veio a se consagrar soberana no ocidente. É inútil dizer que uma psicologia como essa não pode, muito antes de edificar, meramente apresentar uma interpretação coesa do que seja o homem e de como este se manifesta: os próprios meios utilizados para tal tornam a tarefa impossível. Ainda que se admita haver uma gama enorme de manifestações que extrapolam o escopo desta “psicologia dos tratados”, o não analisá-las nunca implica ignorá-las, uma vez que se esboçam conclusões sobre o homem a despeito de não considerá-lo em sua totalidade. O resumo: evitando o anticientífico, a psicologia cem por cento científica é também cem por cento fracassada.