O meu estimado Emil Cioran disse, nestes Cahiers, — publicados postumamente e ainda não vertidos para o português, — que de um pensador sobra-lhe o temperamento. Bela observação! E noto que, quando penso em Cioran, o que relembro-lhe é exatamente o temperamento. Impossível não sorrir. Nestes Cahiers, onde está exposta a dimensão humana de um filósofo que concedeu ao pessimismo várias de suas melhores páginas, — ou que, como disse Fernando Savater, possuía vocação de herege, — estão praticamente todas as cenas que vêm-me em mente ao pensar em Cioran. São quase mil páginas que lhe dotam a obra de um colorido raríssimo: é o filósofo escrevendo para si mesmo, numa página, comentando Buda e Jesus Cristo, noutra acessos de raiva que experimentou em mercearias, ou situações incomuns que vivenciou. Como não sorrir ao ver um sábio, logo após um editor qualquer rejeitar-lhe um prefácio sobre Valéry que lhe custou duras horas de trabalho, exclamar para si mesmo “Terei vingança!”; ou ao ver um atleta dizer que, retornando de vinte quilômetros de caminhada, uma garota ofereceu-lhe o assento no trem; ou, ainda, ao ver um mestre do sarcasmo relatar que, conversando com Jean-Paul Sartre, ouviu do francês ser muito boa a sua “gramática romena”… Penso em Cioran e o que lhe recordo é o humor supremo, que lhe sobressai sobre todas as outras qualidades intelectuais. Cioran, talvez meu amigo predileto a acompanhar-me pelas trevas do pensamento, é também um dos que mais facilmente arranca-me um sorriso do rosto.