Mais uma de Farias Brito:
Diz-se que a arte consiste na proporção e na ordem, e é possível que esteja realmente aí uns dos seus segredos. Mas seria erro supor que nisto consiste todo o seu poder. A proporção e a ordem são, dentro de certos limites, condições da beleza estética; mas são apenas condições exteriores. Há, porém, para completá-la, na sua verdadeira significação, um elemento mais profundo, de sentido puramente interno, que não se poderá explicar simplesmente pela proporção ou pela medida, como por quaisquer outros processos externos. É esse elemento oculto, misterioso, inexplicável, pelo qual a obra d’arte nos impressiona docemente, fazendo sonhar e ver cousas longínquas, esse poder maravilhoso e incompreensível, com que as cousas mais simples fazem, muitas vezes, surgir, como de improviso, sentimentos estranhos que dormiam ignorados nas profundezas d’alma. Lágrimas rebentam, em certos momentos, instintivamente, violentamente e sem que possamos contê-las, por ocasião de uma emoção estética profunda. Tudo se anima, tudo se torna espiritual e humano. E de tais formas, de tais complicações e modalidades de sentimento é capaz o homem, que a natureza inteira se torna, muitas vezes, por assim dizer, pequena, em face do mistério e da grandeza infinita da vida interior. Seria, porém, absurdo tentar explicar tudo isto por processos puramente mecânicos. Os artistas têm deste fato a clara compreensão. Mas os psicólogos de gabinete, não; preocupados com a ideia de dar a interpretação objetiva dos fatos psíquicos, deslocam os dados naturais do problema, e tentam uma cousa em verdade impraticável: — localizar o que é independente do espaço e não se pode conceber como corpo, traduzir na linguagem dos fatos objetivos o que só se pode explicar e compreender como modificação puramente interna, como fato subjetivo, numa palavra: objetivar a consciência. Era como se se pretendesse, por exemplo, representar a figura material da dor ou fazer o desenho de um gemido: o que, aliás, é possível mas apenas simbolicamente. Quem tal tentasse, porém, faria obra d’arte e não de ciência: o que prova que a arte tem mais poder que a ciência. A ciência, de si mesma, devendo ser a interpretação pura e simples da realidade, ficaria fora de seu próprio domínio, se recorresse a processos semelhantes de representação simbólica.
Se consistisse na proporção e na ordem a essência da arte, teríamos uma impressão mais forte lendo uma partitura que escutando-a executada. Não haveria motivo para comparecer fisicamente a uma orquestra, ou visitar fisicamente um museu. Teríamos, aliás, uma impressão muito mais potente se lêssemos análises acadêmicas de todas as obras, em vez de apreciá-las diretamente. Tais são os absurdos que têm de enfrentar aqueles que não enxergam na realidade senão aspectos exteriores, mensuráveis, previsíveis e passíveis de racionalização. E se assim fazem, ou julgam-se compelidos pela razão a fazer, serão para sempre iludidos e terão de se contentar com os medíocres resultados da incompreensão.