Don Quijote de la Mancha, de Miguel de Cervantes

Don Quijote de la Mancha

Mal começo estas linhas e sei que me faltarão palavras… Don Quijote de la Mancha, clássico dos clássicos, obra entre as maiores de toda a literatura universal, primor em todos os quesitos. De tudo o que já li, duas obras suscitaram-me algo que sou incapaz de descrever, um sentimento sem nome, a impressão de qualquer sorte de magia operando, como se houvessem sido escritas por algo diferente de um ser humano; são elas a Commedia, de Dante, e Don Quijote de la Mancha. Mas por quê? Eis o fascinante… El ingenioso hidalgo já foi objeto de obsessão de incontáveis artistas, inspirou muitas e muitas obras e não consigo imaginar alguém que, conhecendo-lhe a história, não se compadeça. Don Quijote de la Mancha faz despertar no leitor uma compaixão infinita, uma relação de afeto real para com a dupla Don Quijote e Sancho Panza. Tentemos esmiuçar a magia… Cervantes, de início, constrói uma união entre personalidades opostas: o caballero andante Don Quijote é, física e psicologicamente, o oposto de seu escudeiro Sancho. O primeiro habita o universo dos sonhos, submete a realidade ao imaginário, interpreta a existência quase em delírio. Já o segundo personifica o pragmatismo. O efeito dessa junção de contrastes é uma harmonia imensa e crescente durante a obra, posto Sancho desenvolver-se de forma a paulatinamente partilhar dos juízos de seu amo. Assim, Cervantes edifica uma relação de amizade que talvez não tenha par na literatura universal. A fidelidade de Sancho comove: quando fala, há sempre uma tentativa velada de conciliação e, acima de tudo, humildade. Já Don Quijote, não podemos deixar de perceber-lhe a ternura por trás do perfil beligerante. A narrativa avança exibindo um intenso conflito entre realidade e imaginação e el caballero, megalômano incurável, que desde o início mostra-se incapaz de perceber a própria mediocridade, gradativamente sucumbe ao próprio imaginário, perdendo a consciência. A realidade impõe-se e escancara o absurdo de tudo quanto Don Quijote sonhava. Mas deixa em aberto a pergunta: será mesmo que Don Quijote não viveu os próprios sonhos? Será mesmo a realidade prática senhora da existência? E, confrontados com um personagem falho, essencialmente frágil, cujas ações sempre remetem ao ridículo, mas que, ainda assim, acredita, não podemos deixar de julgá-lo movido a algo que nos escapa ao entendimento. Don Quijote de la Mancha é obra que dá vida ao mágico e evoca o divino. E o leitor não fecha o livro sendo a mesma pessoa: a doçura que permeia a narrativa impregna e amolece qualquer caráter. A existência, pois, abranda, e aprendemos — ainda que não consigamos explicá-lo — que a vida é mais bela quando não levada tão a sério.

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