Duas posturas básicas

Duas posturas básicas resumem o homem em sua atitude para com a vida: a de vítima e a de agente criador. Delas vemos reflexos infinitos na filosofia, na historiografia, na psicologia e na literatura. Entre ambas, não há conciliação possível, posto que o querer criar e o efetivamente criar nada tem que ver com o sucesso ou fracasso, o fato ou possibilidade, a ideia ou concretização. Tudo se resume a julgar-se paciente ou agente, a julgar sempre o que ocorreu ou como se pode reagir. Trata-se, portanto, de entrever ou não um campo de ação possível, que para alguns é tudo, e para outros inexistente. Entre ambos, mais uma vez, não há conciliação possível, especialmente porque aquele último tipo não suporta a postura do primeiro.

Auto de fé, de Elias Canetti

A impressão que ficamos quando, logo no início deste romance, deparamo-nos com uma cena espetacular em que o protagonista, o professor Peter Kien, é abordado na rua enquanto pensa, ou melhor, é insistentemente demandado por um estranho, até que este, ignorado, toma a liberdade de empurrá-lo, porque julga-se no direito de reclamar atenção para si, a impressão que ficamos é de estarmos diante de um espírito superior. Afinal, quantos seriam capazes de conceber uma cena como esta? imaginar que pode haver um ser humano que pensa enquanto está em silêncio, e que o próprio silêncio não é, para alguns, a expectativa da comunicação? Assim, já ficamos tentados a reconhecer Canetti como legítimo dignatário da Grande Igreja. E criamos, também, uma exagerada expectativa quanto ao professor Kien. Daí que o romance converte-se numa sequência torturante, num aniquilamento progressivo e impiedoso, até que não resta o menor resquício daquela personalidade que a princípio nos impressionou. É um grande romance, não há dúvida, e há pontos em que a sequência de absurdos curiosamente confere realidade aos personagens, cujas obsessões parecem atirá-los todos num estado de semiconsciência, cujas tensões psicológicas parecem colocá-los sempre a um fio de um colapso. Que mais se pode dizer? A técnica discursiva, determinado momento, cansa; mas não é falsa e é eficaz: a prova disso é que sentimo-nos tentados a dar um tiro em cada um dos personagens, tal como frequentemente ocorre com seres humanos reais. A obra, contudo, cairia melhor no teatro… E resta-nos somente reconhecer no autor a qualidade que tanta falta faz aos seus personagens: a lucidez.

A literatura brasileira já é mundialmente relevante

A verdade é que a literatura brasileira já é mundialmente relevante. Ocorre apenas que o mundo ainda não o descobriu. Mário Ferreira dos Santos, Otto Maria Carpeaux e Gilberto Freyre: estes três espíritos são os responsáveis por tal façanha, por terem legado obras sem-par na literatura mundial. É certo que, mais cedo ou mais tarde, haverá um alemão, ou um inglês, ou um americano a descobri-los, e então virão as traduções, e então virá o reconhecimento do patamar já atingido e somente não notado. Sem dúvida, tudo seria mais fácil se os afortunados herdeiros assumissem a herança e cuidassem de sua divulgação. Mas aí já é querer demais…

Revisitar Carpeaux

Revisitar Carpeaux e sua História da literatura ocidental para um exame pouco superior a uma consulta é retornar, após meia hora de leitura, com uma lista de trinta ou quarenta obras a serem lidas. Quer dizer: uma lista suficiente para guiar uns bons meses de estudo. Realmente, a História de Carpeaux é inigualável; é fonte inexaurível e companheira fiel para uma vida inteira. Nunca, nunca decepciona; e quando se evolui, quando se amadurece e o pensamento vaga por novos paradeiros, é voltar a ela e encontrar tesouros antes negligenciados ou conscientemente preteridos, para então concluir que nós mudamos, mas o Carpeaux, a despeito de nossa mudança, permanecerá sempre à nossa disposição.