O conto que Kafka não escreveu

O conto que Kafka não escreveu

Um banalíssimo sujeito mantém, por quinze anos, o mesmo número de celular. Construiu, assim, uma rede de contatos pessoais e profissionais extensa. É, sobretudo, dependente deste número. Eis que, subitamente, passa a receber entre 100 e 150 ligações diárias em horário comercial de empresas tentando vendê-lo qualquer sorte de produto financeiro. Entre 100 e 150 ligações de 8h às 18h: fazendo a matemática de padaria, o número equivale a aproximadamente uma chamada a cada cinco minutos. O sujeito, aliás, o jovem misantropo é forçado a atendê-las todas, posto haver a possibilidade de, entre os números desconhecidos, encontrar-se um possível cliente. O número é, também, um número de trabalho. De cinco em cinco minutos, o telefone toca. O jovem atende com grosseria, dispensa a empresa invasiva irritadíssimo por ser acionado para ouvir sobre produtos que não tem o menor interesse, sem ter jamais concedido abertura para que tais ligações fossem realizadas. Então se lhe torna a rotina um inferno. Não consegue concentrar-se em nada, o telefone não para de tocar. Tem de atender, passa a ser rude na primeira palavra, destrata contatos profissionais por engano. “O senhor Luciano Duarte, por favor…”, “Por gentileza o senhor Luciano…”, “Neste número eu consigo falar com o senhor Luciano?…”. Oh, Kafka, irmão, ajuda esse teu personagem!

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