É muito difícil reconhecer a autonomia daqueles que parecem incólumes às explosões de Nietzsche. Gostam de apedrejá-lo, tirá-lo do contexto, destacá-lo da nobreza de caráter que lhe é peculiar. Nietzsche simboliza a liberdade de espírito, a potência, a coragem intelectual. Desmerecê-lo parece-me, sobretudo, desmerecer estas três nobilíssimas qualidades.
Mas peço o impossível…
Energizemo-nos de Zaratustra (em tradução de Mário Ferreira dos Santos):
Mas peço o impossível; rogo, pois, à minha altivez, que acompanhe sempre a minha sabedoria!
E se um dia me abandonar a minha sabedoria — ah! Ela gosta tanto de voar! — possa então minha altivez voar com a minha loucura!
O monstro moderno
Mário Ferreira dos Santos, sobre Nietzsche:
Era ele adversário do Estado, o monstro moderno, o Moloch dos nossos dias, o devorador de homens e de consciências, a mais brutal criação da fraqueza humana e que terminará por cansá-la totalmente, a ponto de, um dia, abominar todas as formas de opressão, e destruí-las com um ímpeto que fará estremecer as páginas da história. Não o poderá facilmente compreender esse homem de hoje, esse cativo que lambe as algemas, esse “Haustier”, esse animal domesticado, que se acostumou a adorar o monstro de que ele fala.
A nota data de 1957. Que dizer? Pouco mais de meio século, e podemos verificar a precisão da brilhante observação de Mário. O colapso do estado moderno é inevitável, entretanto… o “cativo que lambe as algemas” continua, passivo, a lambê-las, num estado de inconsciência admirável em que não exibe o menor sinal de esgotamento. A situação só fez agravar: o monstro cresceu, ampliou-lhe o domínio, e já dispensa qualquer pudor. A questão, porém, perdura estática: até quando? De um lado, a reação é inevitável; doutro, o despertar parece distante. O que resta evidente é que, como bem previu Mário, chegará o dia em que o “devorador de homens e de consciências” ver-se-á diante de uma explosão violentíssima e extraordinária, oriunda de uma letargia que aparentava perpétua.
A prosa de Paul Valéry
Incrível como a prosa de Paul Valéry é contagiante! Especialmente nos ensaios, deparo-me com uma vivacidade enorme, inédita, em linhas que expõem grande curiosidade, erudição em variadas áreas, leveza no manejo do idioma, precisão nas observações e, acima de tudo, um olhar a mim todo novo. Surpreendo-me, por exemplo, com alguns adjetivos. Discorrendo sobre experiências intelectuais ou literárias, lá está o cativante délicieux, ainda que na forma adverbial. Salvo engano, esse adjetivo jamais foi evocado uma única vez por estes dedos mórbidos, nem em prosa, nem em verso, nem em nada. Incrível! E, analisando as descrições de Valéry, a assimilação intelectual de suas experiências, suspeito-me a percepção falha — ou será a experiência? Tanto faz… Trabalhemos! E comecemos com esta nota: a prosa de Valéry é deliciosamente empolgante!