O brilhante João Pereira Coutinho

Há quase uma década, a coluna da Folha de S. Paulo desse português é a atração de minhas terças. Junto de Luiz Felipe Pondé, João Pereira Coutinho constitui o meu contato exclusivo com jornais há anos. Aliás, são estes, acrescidos de Nassim Nicholas Taleb, os contemporâneos que exerceram influência mais forte e determinante em minha formação.

Mas que dizer de João Pereira Coutinho? Comecemos pela escrita: não há na Folha de S. Paulo coluna que verta mais lustroso o estilo, que trate melhor a língua portuguesa que a deste exímio português.

Em segundo lugar: a erudição. Se Coutinho, doutor em ciência política, escrevesse sobre política, eu jamais lhe acompanharia fielmente as linhas. A política, quando muito, não lhe serve senão de pretexto: os textos de Coutinho, todos eles, cavam mais fundo; suas colunas são atemporais. Cinema, literatura, filosofia, história, comportamento, estética… sobre todos esses e vários outros assuntos Coutinho escreve com o arsenal de um especialista. E não há, em Coutinho, ponto final sem eco.

Mais: o bom humor. As colunas de João Pereira Coutinho para a Folha de S. Paulo são melhor definidas, em verdade, como crônicas. E o bom humor é a qualidade soberana de um cronista. O bom humor torna o texto leve, apetitoso, trazendo-lhe uma nova dimensão e fazendo com que o cronista eleve-se muito acima da transitoriedade do assunto. Assim, os títulos dos textos de Coutinho jamais me desanimam: sei que, se lá está um Trump ou um Bolsonaro, em poucas linhas estarei imaginando-os a dançar.

Assim, pela quantidade de referências, pela abundância de reflexões, pelas aulas particulares de estilo e pelo profundo impacto que a leitura das colunas de Coutinho ao longo de quase uma década causaram, já não digo em meu pensamento, mas em minha personalidade, posso dizer que tenho em João Pereira Coutinho um mestre, um pai intelectual.

E que fique aqui registrado o meu reconhecimento.

____________

Leia mais:

O martírio do artista

Um soneto de Augusto dos Anjos:

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!

Tarda-lhe a Ideia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!…
É como o paralítico que, à míngua
Da própria voz e na que ardente o lavra

Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!

____________

Leia mais:

O leitor do futuro

Às vezes me imagino diante de um leitor do futuro. Sou, para ele, um completo estranho; um bicho, diria… absolutamente incompreensível. Nossos hábitos não condizem, não temos afinidade de gostos, nossos gênios são, exatamente, opostos. Que pensaria ele de mim? Ora, tudo quanto se pensa de um animal pouco evoluído. E se meus costumes lhe causariam espanto, bem sei que jamais lhe obteria qualquer aprovação. Pela lente do leitor do futuro, observo, por exemplo, minha aguda misantropia: quanta repulsa! quanto estranhamento! Como é que pode um sujeito moderno se inclinar à solidão? E se não bastasse a expressão desdenhosa, vejo-a facilmente se transmutando em ódio, uma vez percebendo o desdém recíproco. Esse bicho, em verdade, merece umas boas pauladas! É um verdadeiro câncer social! E como câncer não pode, em nenhuma hipótese, proliferar! Risos, muitos risos… mal sabe o leitor do futuro que o bicho é psicologicamente castrado, que a ele repugna a multiplicação. Mas talvez o bicho delire, uma vez fantasiando esse leitor do “futuro”…

____________

Leia mais:

História da literatura ocidental, de Otto Maria Carpeaux

História da literatura ocidental, esse colosso de quase 3 mil páginas, é, simplesmente, um monumento imortal erigido em língua portuguesa e publicado no Brasil. O austríaco Otto Maria Carpeaux, que adotou nossa pátria e pôs-se a aprender nosso idioma já na meia-idade, deu às letras nacionais o que brasileiro algum jamais dará. Pode-se dizer, sem medo do erro, que foi Carpeaux o maior erudito brasileiro de todos os tempos. E, se temos no jardim esse colosso único, impressiona que nós, brasileiros, não demos o menor valor. Palavras de Carpeaux que prefaciam a primeira edição da obra dão ideia da magnitude desta História da literatura ocidental:

Estudaram-se todas as literaturas românicas e germânicas da Europa e seus ramos na América do Norte e do Sul; as eslavas e outras da Europa oriental; e, naturalmente, as literaturas grega e neogrega. (…) Foram estudados, em suma, mais de 8.000 autores. Mas a obra não tem pretensão nenhuma de ser um dicionário bibliográfico completo.

Modéstia… O estudo empreendido por Otto Maria Carpeaux e publicado em 1959 é único a nível mundial. É o que diz, também, Olavo de Carvalho, em excelente ensaio que prefacia a edição da Topbooks de Ensaios reunidos, outra obra de Carpeaux:

O homem de quem estamos falando é autor da única história da literatura jamais escrita na qual a sucessão das idéias e criações literárias no Ocidente, de Hesíodo a Valéry, aparece como um movimento contínuo que, por baixo da variedade desnorteante das suas manifestações, não perde jamais a unidade de sentido.

Que dizer? Penso em Carpeaux e me espanta o silêncio. Não se fala em Carpeaux, não se comenta sobre o homem de maior relevância na crítica literária nacional. Hoje, já estamos em distância que nos permite o juízo imparcial: Carpeaux, dentre todos os críticos, foi quem prestou o maior serviço às letras nacionais. Nada em português se compara à sua História da literatura ocidental.

História da literatura ocidental é capaz de dotar qualquer estudante de um conhecimento abrangente e preciso sobre os principais autores de mais de vinte séculos de literatura. É capaz de guiar um plano de estudos por décadas. E engana-se quem pensa que Carpeaux tão somente apresenta os autores e insere-os no contexto em que produziram suas obras; Carpeaux critica, transita com extrema argúcia por entre as correntes de pensamento mais diversas, pelos variados estilos e variadas concepções estéticas, analisa biografias e traça a evolução dos autores, insere as obras no contexto em que foram produzidas mostrando-nos, por fim, o peso histórico de cada autor segundo o seu julgamento.

Mas onde estão, por exemplo, as traduções dessa obra imensa? Longe, muito longe… Digo e pareço sonhar. Carpeaux não aparenta sequer consolidado no Brasil. Não atraiu sequer o interesse de biógrafos. Pergunto: o que estamos esperando? que surja alguém mais relevante a escrever sob o sol brasileiro? alguém de cultura superior? Ah, claro… então esperaremos… esperaremos, talvez, por muitos séculos, talvez para todo o sempre…

Otto Maria Carpeaux foi um intelectual enorme. Deu ao Brasil o que nunca tivemos, o que sempre nos faltou. Será que podemos, hoje, prescindir de Carpeaux? virar as costas à sua História da literatura ocidental?

É uma escolha. Contudo está, diante de nós e muito bem construída, a ponte para integrar nossa literatura a todas as culturas de todas as épocas. Cabe-nos, porém, a decisão de atravessá-la — ou, é claro, continuar como somos: irrelevantes no cenário mundial.

____________

Leia mais: