O cume é vizinho natural do abismo

Há um notável problema proveniente da ascendência e resume-se basicamente nisto: o cume é vizinho natural do abismo. Poderia formular de outras maneiras, dizendo que quando se chega ao topo, o movimento só é possível para baixo, ou que a distância do pico ao precipício é qualquer deslize… Penso, agora, em Julien Sorel, mas os exemplos são inúmeros. Por que, exatamente, o destaque nos torna tão vulneráveis? Inveja? Pelo desejo que, por sua natureza, nos expõe? Não posso deixar de notar o potencial destrutivo da ascensão, as provações que esta normalmente exige e seu prêmio enganoso, senão injusto. Racionalmente, a conclusão se impõe: talvez o mais sábio seja deixar imediatamente de escalar.

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O grande estilo exclui também o que é agradável

Palavras de Nietzsche:

A grandeza de um artista não se mede segundo os “belos sentimentos” que ele desperta: só as mocinhas acreditam nisso. Mas segundo a intensidade que emprega para atingir o grande estilo. (…) Não desejaria desapreciar as virtudes amáveis, mas não se concilia com elas a grandeza de alma. Nas artes, o grande estilo exclui também o que é agradável.

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Injustiças sem fim

No estudo da história, mais impressionante que as conquistas, as guerras, o desenvolvimento das civilizações  e todo o resto, é a sucessão quase que inacreditável de injustiças cometidas contra os grandes homens. Minoria são os que, honrados, valorosos, angariaram para si uma memória digna da própria obra. Pior que as perseguições que alguns tanto sofreram em vida, pior que o desprezo, a conspurcação pública, a pobreza, a vida que se lhes apresentou como uma sequência de frustrações, desgostos, um após o outro, amontoando-se e avultando como fossem provações, pior que tudo isso é, após a morte, caírem em olvido, senão difamados, quando já não podem responder ou, ainda: provar como a raça humana lhes é indigna.

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O vermelho e o negro, de Stendhal

O vermelho e o negro, de Stendhal… Romance certamente entre os melhores de todos os tempos. Enredo magnífico, que encerra a recusa terminante de Julien Sorel, filho de humilde carpinteiro, a seguir uma vida camponesa medíocre e ser o espelho do próprio pai. A trama corre na França em proximidades da Revolução de 1830. Julien, criado por pai inculto, é jovem que desde cedo apresenta proeminência na leitura dos textos sacros: sabe latim e recita trechos da Bíblia de cor. Porém o pai, severo, envergonha-se do filho franzino, pouco apto ao trabalho braçal, invejando-lhe, ademais, os dotes intelectuais que não possui. Certo dia este rude camponês vende o filho a ser preceptor de algumas crianças, não deixando de lembrar-lhe a dívida que deixou em aberto pela comida que recebeu em casa, que um dia terá de pagar. O pai aproveita e deixa manifesto ao filho o desprezo pela função que irá exercer. Julien, entretanto, enxerga na obrigação uma oportunidade: o contato diário com a Bíblia, pregando a uma família de classe social superior, poderá abrir-lhe o caminho para carreira eclesiástica, dotada de inúmeras vantagens. Temos aqui um conflito assaz revelador da personalidade de Julien Sorel: desejoso da carreira militar, admirador íntimo de Napoleão, tem de optar pela religiosa, visto ser a vereda que a condição lhe permite. Abandona o sonho da farda vermelha, passando a perseguir o da batina negra. Julien impressiona, agrada, e em pouco consegue ingressar num seminário. A obra, pois, ganha corpo: o jovem, a despeito de seu conhecimento da doutrina cristã, não ingressa no seminário pela fé, mas pelo desejo de qualquer coisa que o afaste da realidade camponesa, qualquer coisa que lhe traga ascensão social. Reparamos atitudes, palavras de nosso protagonista e vemos, em suma, um bom rapaz, piedoso e austero, inteligente e trabalhador. Mas Julien veste uma máscara: está disposto a tudo para saciar-lhe o desejo. Stendhal, nesse magnífico e emblemático exemplo do que se convencionou chamar de “romance psicológico”, afunda na análise dos pensamentos e motivações do protagonista, que cai em armadilhas o tempo inteiro, posto vê-se refém das próprias paixões, incapaz de dominar-lhe o instinto. Julien encontra-se um hipócrita, dependente da simulação, da falsidade para progredir em seus objetivos. A narrativa corre e o jovem, pouco a pouco, uma vez após a outra, sufoca sua dimensão humana, sua dimensão moral. Os afetos que nutre, sinceros, acabam sempre em segundo plano quando contrapostos a oportunidades de ascendência. Assim Julien avança, adquire respeito, voz entre classes superiores da sociedade, inacessíveis para o filho de um camponês. E rapidamente deixa, de fato, de ser tão somente o filho de um camponês. Stendhal entrega-nos um personagem banhado na resiliência, no talento, na inveja, na hipocrisia, na inteligência, nas paixões, na ambição, no remorso, na saudade, e não conseguimos deixar de sentir junto ao jovem, de maquinar e refletir consoante às suas reflexões. O problema escancara, porém, quando percebemos a essência da personalidade de Julien Sorel — e talvez da nossa: — escravo do desejo, extremamente orgulhoso, Julien parece movido por um agudo ressentimento contra o mundo, parece desejar dar-lhe o troco. E acaba caindo, porquanto o desejo lhe não poderia conduzi-lo a outro fim. Queimando-se, pois, em todas as relações que construíra, tendo-lhe a ambição a descoberto, taxado de vil e mau-caráter, Julien vê-se condenado à pena do sangue. Num arroubo selvagem e maligno, fracassa; encarcerado, imerso em melancolia, sente-lhe o amor ressurgir. Mas é somente o espasmo da matéria que já nasce condenada. Julien Sorel acaba decapitado. Seu nome, contudo, perdurará enquanto houver espécie humana.

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