A vida parece ter uma mecânica que, ao menos para aquele que não mente para si mesmo no fundo de sua consciência, calca repetidamente o seu orgulho e escancara a sua pequenez. E se tal parece uma constante, variam drasticamente as reações: alguns se fortalecem, mais conscientes e mais humildes, salpicando a vontade de uma modéstia salutar; já outros, lamentavelmente, descaem num desgosto invencível, destrutivo e paralisante. Daí talvez a razão em Santo Agostinho dizer que o orgulho é a raiz de todas as fraquezas, porque o orgulho, se não cede perante à realidade imposta pela vida, por si mesmo só produz destruição.
A verdadeira vocação solidifica mais facilmente…
A verdadeira vocação solidifica mais facilmente quando não dispõe de um meio favorável. Quando não há incentivos ou, por outra, quando se perde exercendo-a, tudo fica muito mais claro, e brota uma como fortaleza da constatação de que é necessário assumir-se e vergonhoso negar aquilo que se é. Aquele que prossegue, pois, sem um professor, um amigo, um ambiente social ou profissional que o alente, sem um empurrão que seja ou sequer uma opinião favorável, um dia acorda e percebe ter desenvolvido uma vontade sólida como um rochedo. E então tem de agradecer muito por essa conjuntura que afinal o favoreceu.
Em meio à interminável miséria humana…
Em meio à interminável miséria humana, há sempre o exemplo edificante; basta procurar. E é preciso fazê-lo sempre, quando o estudo conduz à necessária imersão na primeira, para evitar que ela turve completamente a visão. Reviver admirações antigas, relembrar-se do nobre e sincero já presenciado, tudo isso consola e motiva, tudo isso escancara o quão mais rico é esforçar-se pelo bom. E se a circunstância consterna, se a existência parece escurecer de súbito, é preciso apegar-se, no mínimo, à consciência desta convicção.
O choque que sofri após a primeira leitura…
O choque que sofri após a primeira leitura de Crime e castigo, provavelmente o mais determinante de minha vida inteira, deveu-se, em grande medida, à constatação de que o que Dostoiévski fez em Crime e castigo ser diferente de tudo quanto eu já havia testemunhado, dentro e fora das letras, e à constatação da imensa nobreza deste intento. Fazer algo assim, concluí, justifica e dignifica uma existência. E é tão diferente o que faz Dostoiévski e alguns outros autores que, hoje, já há mais de uma década distante daquela primeira impressão, percebo que o tempo não fez senão reforçá-la. Um livro como Crime e castigo não sairá jamais da pena de alguém que deseja contar simplesmente uma história. Por isso, é com absoluta naturalidade que leio as linhas de Joseph Frank revelando que, após uma combinação dramática de circunstâncias, Dostoiévski escreve ao irmão dizendo que, a partir daquele momento, o objetivo de sua vida seria estudar o sentido da vida e do homem. Sem essa resolução consciente, ele jamais conseguiria se aproximar do que fez.