A flexibilidade da língua portuguesa

Recebo a simpática instrução por e-mail: “(…) na página “Leituras” está escrito “Assim me tenho divertido” enquanto o correto seria “Assim eu…” pois “me” não faz nada (…)”. Justifico-me nesta nota.

Claro, amigo, “me” não faz nada além de receber a ação verbal: é objeto. Abaixo as transformações a que submeti a construção “Assim eu tenho divertido a mim mesmo”:

1- Assim eu tenho divertido a mim mesmo.

2- Assim tenho divertido a mim mesmo.

3- Assim tenho divertido-me.

4- Assim tenho-me divertido.

5- Assim me tenho divertido.

Uma das características mais belas da língua portuguesa é justamente essa flexibilidade quanto à colocação. O pronome oblíquo átono pode ocupar diversas posições dentro de uma mesma frase. Neste caso, saliento: 1) a concisão em se reduzindo “a mim mesmo” pelo oblíquo “me”; 2) a absoluta repugnância aos ouvidos na posposição do oblíquo ao particípio, evidenciado no exemplo 3 (“divertido-me” não existe em português); e 3) a força atrativa do advérbio “assim”, que me permite puxar o oblíquo para trás do verbo auxiliar.

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Em busca de sentido, de Viktor Frankl

Sempre me irritou a ideia, muito disseminada, de que o ser humano é apenas um cachorro. Vejo isso o tempo inteiro: seja no sujeito que julga a fome ser o principal problema do homem ou na psicologia que se atém aos instintos e jamais ultrapassa os instintos. Pois bem. Eis que nasce um gênio — e precisamos de gênios para dizer-nos o óbvio… — e diz o seguinte: há no ser humano uma dimensão espiritual que o define e o transcende. E o gênio, de nome Viktor Frankl, teve de provar na carne a validade da própria teoria, suportando as terríveis atrocidades de vários campos de concentração nazistas e mantendo a sanidade mental. Quer dizer: pulsa em nós o animal, mas há algo mais nobre. Abaixo um trecho do livro:

No campo de concentração, por exemplo, nesse laboratório vivo e campo de testes que ele foi, observamos e testemunhamos alguns dos nossos companheiros se portarem como porcos, ao passo que outros agiram como se fossem santos. A pessoa humana tem dentro de si ambas as potencialidades; qual ser concretizada, depende de decisões e não de condições.

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Mulheres…

Banhemo-nos de Camilo Castelo Branco, desta vez refletindo a respeito das mulheres:

Não era muito que Tadeu de Albuquerque fosse enganado em coisas de amor e coração de mulher, cujas variantes são tantas e tão caprichosas, que eu não sei se alguma máxima pode ser-nos guia, a não ser esta: “Em cada mulher, quatro mulheres incompreensíveis, pensando alternadamente como se hão de desmentir umas às outras”. Isto é o mais seguro; mas não é infalível.

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O lobo da estepe, de Hermann Hesse

Fechei essa obra genial desgostoso do desfecho da trama. Pensei: “Como será que esse livro repercutirá em mim no futuro?”. Refleti sobre a leitura: desde o início, fiquei encantado com a agudeza e precisão das descrições psicológicas do misantropo, autodestrutivo e depressivo Harry Haller, que a mim parecia-me um irmão. A narrativa desenvolve-se instigante, vendo Harry brotar, através de uma mulher — Hermínia, — seu lado humano, em seguida enfrentando uma acirrada batalha psicológica em vista de sua personalidade ambivalente. A tensão psicológica é constante, e as reflexões de Harry são dignas de nota. Vem o cume do livro, onde Harry parece em delírio. Senti-me, pouco antes, diante da presença física de Goethe e Mozart, evocados pelo autor. Não me emociono nem um pouco com o que se poderia chamar de clímax do enredo — ou, se quiserem, com o que imediatamente sucede o clímax. — Algumas páginas adiante, fecho o livro: “E então? De que me lembrarei no futuro?”. Passaram-se dois meses:  já mal me lembro do desfecho; o restante do livro, contudo, resta vivo em mim.

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