Quem há que não se espante?

Quem há

Vamos desta abertura magnífica de uma das epístolas de Camões:

Quem póde ser no mundo tão quieto,
Ou quem terá tão livre o pensamento,
Quem tão exprimentado, ou tão discreto,
Tão fóra, emfim, de humano entendimento,
Que ou com público effeito, ou com secreto
Lhe não revolva e espante o sentimento,
Deixando-lhe o juizo quasi incerto,
Ver e notar do mundo o desconcêrto?

Quem ha que veja aquelle que vivia
De latrocínios, mortes e adulterios,
Que ao juizo das gentes merecia
Perpétua pena, immensos vituperios,
Se a Fortuna em contrário o leva e guia,
Mostrando, emfim, que tudo são mysterios,
Em alteza d’estados triumphante,
Que por livre que seja não s’espante?

Quem ha que veja aquelle, que tão clara
Teve a vida, qu’em tudo por perfeito
O proprio Momo ás gentes o julgára,
Inda quando lhe visse aberto o peito,
Se a má Fortuna, ao bom somente avara,
O reprime, e lhe nega seu direito,
Que lhe não fique o peito congelado,
Por mais e mais que seja exprimentado?

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