O leitor do futuro

Às vezes me imagino diante de um leitor do futuro. Sou, para ele, um completo estranho; um bicho, diria… absolutamente incompreensível. Nossos hábitos não condizem, não temos afinidade de gostos, nossos gênios são, exatamente, opostos. Que pensaria ele de mim? Ora, tudo quanto se pensa de um animal pouco evoluído. E se meus costumes lhe causariam espanto, bem sei que jamais lhe obteria qualquer aprovação. Pela lente do leitor do futuro, observo, por exemplo, minha aguda misantropia: quanta repulsa! quanto estranhamento! Como é que pode um sujeito moderno se inclinar à solidão? E se não bastasse a expressão desdenhosa, vejo-a facilmente se transmutando em ódio, uma vez percebendo o desdém recíproco. Esse bicho, em verdade, merece umas boas pauladas! É um verdadeiro câncer social! E como câncer não pode, em nenhuma hipótese, proliferar! Risos, muitos risos… mal sabe o leitor do futuro que o bicho é psicologicamente castrado, que a ele repugna a multiplicação. Mas talvez o bicho delire, uma vez fantasiando esse leitor do “futuro”…

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Sobre a peste

Como habitual, a contingência expondo a fragilidade do homem, desnudando-o por completo. Seus reflexos naturais: o medo e o desespero. Assim, nenhuma novidade: cadáveres sempre assustaram. Entretanto, talvez a nova peste tenha exposto um fresco fenômeno de massa: a dependência do trabalho. Digo isso por ver os que, enclausurados à força, gritam ao ver-se-lhes a vida esvaziada de sentido, quer dizer: se não há o trabalho, que resta ao homem?

Versamos aqui sobre uma classe que, ao menos, tem na vida algum propósito… Mas aí está o que a peste ilumina, a despeito das evidentes fragilidades econômicas e sociais modernas: a vida orientada à profissão envolve um risco óbvio, agravado paulatinamente pelo tempo, de converter em doença fatal o vazio das mãos que se lhe veem escorrer pelos dedos o trabalho. Mãos que, aposentadas, poderão encontrar numa corda o seu único alívio.

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Sarcasmo, sarcasmo…

Vocês acabarão concluindo que sou incapaz de me afeiçoar: muito bem, muito bem… quase lá! E chegará o dia — isso parece-me evidente — em que eu não mais me suportarei. Pois a conclusão é óbvia: vejo em tudo mazelas… e a mim mesmo não me julgo demasiado especial… Contudo me agrada o meu próprio cinismo, e isso dá-me forças, distingue-me do mundo em redor. Penso por quanto tempo… Mas que opções teria ao meu feitio exótico? Digo: já estou contaminado. Poderia eu, hoje, neste estado, dizer palavras de esperança? Poderia crer-me uma exceção? Fazer de minha mente um teatro (como faço de minhas relações)? De forma alguma… meu cinismo jamais permitiria. Não vejo nos outros senão o que habita e lateja em mim mesmo, portanto encabeço, sem dúvida, a lista de meus condenados. Com a diferença, claro, da consciência e do sorriso sarcástico no rosto…

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Pastores evangélicos

O capitalismo é pleno entre os pastores evangélicos. Não que constitua algum demérito, mas capitalizar o nome de Deus soa-me um marketing demasiado agressivo. Por que novamente me meto onde poderia evitar? Em todos os tempos e em variadas religiões, foi o líder espiritual um asceta: negando os prazeres da carne, pagava pelo título de autoridade espiritual. Exatamente com a igreja evangélica isso mudou, e hoje o pastor veste traje completo, tem esposa e anda de Hillux. Será que só a mim causa estranhamento? Percebo, desconcertado, a obsessão de pastores com os fariseus: vejo-lhes condenando, num só pacote, o conhecimento e a ganância. Mas nunca vi, nem ouvi falar, em toda minha vida, de um único pastor de igreja mediana em dificuldades financeiras: mais, a pregação remunera-lhes qual exitosos empresários. Creio precisarmos de uma redefinição: que é a ganância? Sobretudo, que sempre representou a ganância nos tempos antigos?

Prossigo — e arrepio-me diante da obsessão: — só pode falar de ganância aquele que dá as costas ao dinheiro. E se vejo um pastor evangélico com mais dinheiro que seus fiéis, considero-lhe um hipócrita. Paciência, muita paciência com minhas generalizações… Mas não sou eu a pregar que somos todos irmãos. Por que o pastor não dá o exemplo? Poderia começar, de bom grado, partilhando-lhe a riqueza e guardando para si somente o necessário à vida — e a espalhar seu verbo, como mensageiro de Deus. Mas se contenta o pastor com tão pouco? De jeito nenhum! O pastor quer apartamentos e carros luxuosos, quer viajar pelo mundo e julga-se filho de Deus, isto é, julga-se apto a gozar, também, dos prazeres do capital. Muito bem, muito bem… E cada qual lidando com a própria ganância e mirando a face hipócrita no espelho.

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