Álcool e arte

Embora já tenha brincado, num poema dedicado a Augusto dos Anjos, que eu supostamente fazia versos ao lado de uma taça de vinho, tal possibilidade é-me absolutamente impensável, e não consigo sequer cogitar um possível estímulo proveniente do álcool que facilite o trabalho criativo, especialmente em se tratando de poesia. Para fazer versos, é preciso reunir não somente toda a lucidez disponível, mas muita energia, boa disposição e silêncio, para que seja possível concentrar inteiramente o espírito na criação. Mesmo na prosa, que por vezes parece um trabalho de força, o álcool não seria senão um empecilho após as primeiras linhas, quando é preciso sustentar a concentração e avançar como empurrando as pesadíssimas palavras para frente. Do álcool, somente se extrai uma certa euforia e uma ilusão de que a ideia sairá magnífica no papel — assim como ocorre por vezes sem ele, e então temos de confrontar a realidade… Parece-me justa a comparação com um atleta de alto nível, que embora possa gostar de beber, jamais o fará nos instantes que precedem um treino sério ou uma competição.

Tem de haver, obrigatoriamente, uma diferença…

Tem de haver, obrigatoriamente, uma diferença entre versos longamente meditados e versos talhados em segundos. Se não o leitor, é o poeta quem deve senti-la. Caso contrário, é admitir que nem a mente, nem o esforço servem de nada. E a paciência uma virtude daqueles que não têm talento. Não, não… parece haver aí um contrassenso, assim como há justeza na maior gratificação proveniente da conclusão de trabalhos demorados. A grande arte pede tempo, ainda que para ratificar uma criação concebida num repente.

Os verdadeiros e os artificiais

Diz Guyau, no prefácio de Vers d’un philosophe:

Il y a deux écoles en poésie : l’une recherche la vérité de la pensée, la sincérité de l’émotion, le naturel et la fidélité parfaite de l’expression, qui font qu’au lieu d’un auteur ” on trouve un homme ” : pour cette école, pas de poésie possible sans une idée et un sentiment qui soient vraiment pensés et sentis. Pour d’autres, au contraire, la vérité du fond et la valeur des idées sont chose accessoire dans la poésie : le tissu brillant de ses fictions n’a rien de commun ni avec la philosophie ni avec la science ; c’est un jeu d’imagination et de style, un ravissant mensonge dont personne ne doit être dupe, surtout le poète.

Tal divisão, que parece mais precisa que as tradicionais escolas literárias, e que pode ser facilmente estendida às outras artes, resume os artistas em dois grupos: os verdadeiros e os artificiais. A única ressalva possível consiste em dizer que, em muitos casos, a emoção imaginada pode ser uma emoção sentida, isto é, a imaginação, por fortíssima, vale de experiência. De resto, é admitir que há aqueles que fazem arte por uma necessidade expressiva, aqueles aos quais uma vida sem arte é absolutamente injustificada, absolutamente impossível; e há aqueles aos quais a arte é um divertimento e uma exibição. Isso basta.

A língua carece de uma obra

Notando a confusão terrível em que se encontram, ainda hoje, alguns conceitos da versificação portuguesa, como a “cesura” e o “encadeamento”, sendo a primeira utilizada para exprimir desde tonicidade à divisão silábica, incluindo usos mais criativos como “o repouso da voz sobre uma sílaba”, e a segunda para expressar tanto o chamado cavalgamento como a repetição de fonemas, frases ou até versos inteiros, concluímos que a língua carece de uma obra que seja capaz de esclarecer tais e outros conceitos. Os tratados de Castilho, Bilac e Guimarães Passos são incompletos por não dedicarem uma linha ao ritmo — curiosamente, o que há de mais importante na poesia; — outros há que, embora devam ser reconhecidos pela intenção, lamentavelmente não compreenderam ou compreenderam incorretamente muitos aspectos básicos da poesia. Duque-Estrada e Bandeira, grandes versificadores, produziram obras de bolso, pouco abrangentes. Said Ali brilhantemente expôs uma interpretação nova à versificação portuguesa, mas sua obra não é capaz de instruir, do zero, um iniciante, posto que se escusa a estender-se em muitos conceitos que ao autor pareciam óbvios. Disso tudo parece a língua carecer não de um tratado com regras, mas de uma obra que simplesmente clarifique conceitos básicos e reúna o que há de positivo desde Castilho, sendo um apoio seguro para aqueles que desejam fazer versos. Como é possível não havê-la?