Manuel Said Ali

Li, em sequência, Dificuldades da língua portuguesa e Versificação portuguesa, de Manuel Said Ali, filólogo e sintaticista brasileiro. Qual não foi minha surpresa! Busquei Said Ali em indicação de Manuel Bandeira, e vi em ambas as obras uma visão ímpar sobre nossa língua. Na primeira, Said Ali ilumina questões escabrosas do idioma, como o infinitivo pessoal, o espantoso pronome “se” e os particípios duplos, exibindo ostensivo domínio e noção viva da formação e evolução do português. Na segunda, bom, peguemos emprestadas as palavras de Manuel Bandeira que prefaciam o livro:

O compêndio Versificação portuguesa, ora editado pelo Instituto do Livro, parece-me, não obstante sua brevidade e concisão, o mais inteligente e incisivo que sobre a matéria já se escreveu no Brasil, senão também em Portugal. O eminente Prof. Said Ali, de quem tive a honra de ser aluno de alemão no colégio Pedro II, (…) a quem devemos tantas contribuições magistrais ao estudo de nosso idioma, não é um poeta. Mas o seu íntimo conhecimento da poesia latina e da poesia das grandes literaturas ocidentais dá-lhe competência para versar o assunto com uma autoridade que não terá talvez nenhum poeta da língua portuguesa.

Findas as leituras, não poderia estar mais agradecido. Manuel Said Ali, após extensos estudos, logrou resumir com clareza e precisão inúmeras questões dúbias de nosso idioma e iluminar outras tantas com análises excepcionais. Registro aqui, pois, minha indicação e meu respeito pela obra do professor.

____________

Leia mais:

Nietzsche e a impotência da linguagem

Nietzsche foi um crítico da linguagem. Sabiamente percebeu que ela só é capaz de generalizar, simplificar o mundo e falsificar o real. Pascal disse parecido em torno da mesma lógica: a essência, ou o conhecimento, não está passível de ser posto em palavras — ou apreendido. Para Nietzsche, a linguagem é uma tradução, e nosso aparato cognitivo não nos dá senão uma perspectiva da realidade, ou seja: não somos capazes de definir a coisa em si, e saber é questão de interpretar e buscar o domínio do caos da aparência. Muito bem! Pois que eu olho em redor e só vejo convicções, verdades, opiniões sensatas, interpretações fundamentadas, conclusões empíricas, tudo isso envolto num maniqueísmo absoluto. Cautela e dúvida, hoje, são sinais de fraqueza e falta de preparo. Por isso — e por outras — reconheço minha absoluta incompatibilidade para com meu tempo e meu profundo desprezo para com as pessoas em meu redor.

____________

Leia mais:

A flexibilidade da língua portuguesa

Recebo a simpática instrução por e-mail: “(…) na página “Leituras” está escrito “Assim me tenho divertido” enquanto o correto seria “Assim eu…” pois “me” não faz nada (…)”. Justifico-me nesta nota.

Claro, amigo, “me” não faz nada além de receber a ação verbal: é objeto. Abaixo as transformações a que submeti a construção “Assim eu tenho divertido a mim mesmo”:

1- Assim eu tenho divertido a mim mesmo.

2- Assim tenho divertido a mim mesmo.

3- Assim tenho divertido-me.

4- Assim tenho-me divertido.

5- Assim me tenho divertido.

Uma das características mais belas da língua portuguesa é justamente essa flexibilidade quanto à colocação. O pronome oblíquo átono pode ocupar diversas posições dentro de uma mesma frase. Neste caso, saliento: 1) a concisão em se reduzindo “a mim mesmo” pelo oblíquo “me”; 2) a absoluta repugnância aos ouvidos na posposição do oblíquo ao particípio, evidenciado no exemplo 3 (“divertido-me” não existe em português); e 3) a força atrativa do advérbio “assim”, que me permite puxar o oblíquo para trás do verbo auxiliar.

____________

Leia mais:

Escrever para o cinema

Creio ter sido Faulkner que disse uma vez o quanto escrever para o cinema prejudica a criatividade de um autor. É claro, Faulkner é mais autoridade para falar sobre o assunto, mas não creio que o cinema apenas mine a criatividade de um escritor. Escrever para o cinema, em meu caso, foi de profunda importância. Para os que nunca leram um roteiro — e que não perdem muita coisa: — o texto cinematográfico, quando bem escrito, é de extrema objetividade: a cena descreve exata e somente o necessário para ser inteligível. Quase não há adjetivos, uma personagem jamais se apresenta com “olhar vagueando por devaneios cálidos”, e as janelas em hipótese alguma são “tristes e sombrias, varadas por uma fraca luz que desfalece meio à penumbra”. É verdade, é verdade: há menos arte num roteiro de cinema do que em Tolstói. Porém, escrever para o cinema obriga o escritor a perguntar-se: qual o objetivo desta cena? Qual a função deste objeto, personagem ou inflexão? É mesmo necessário este trecho? Qual, antes de tudo, o objetivo, a mensagem deste filme? A cena que estou escrevendo contribui, de alguma maneira, para o enredo do filme? possui alguma ligação direta com a mensagem principal? O filme pode ser resumido, sumariamente, nos três atos da tragédia grega? O clímax convence? está bem amparado? Há justificativa dramática e psicológica para as ações das personagens? Poderia continuar citando, mas basta. O que penso, pois, é que esse tipo de pergunta parece-me fundamental para qualquer texto artístico e, humildemente, creio ser necessário fazê-las de forma metódica. Faulkner talvez não diria o mesmo mas, particularmente, dou graças ao cinema por tê-las entranhadas em minhas veias.

____________

Leia mais: