Talvez não haja sensação mais prazerosa…

Talvez não haja sensação mais prazerosa do que aquela que brota como um riso diante das mais amargas circunstâncias. Um riso sincero, que atravessa o espírito e se manifesta pleno, como irradiando-se por cada molécula. Enfim a vida, e dane-se ela! Sem dúvida, é preciso muita maturidade para experimentá-lo, e é justíssima a representação do grande sábio como aquele que se permite um riso sereno, perene e despreocupado. Há uma dimensão transcendente neste riso que brota como desenlace de um tremendo esforço espiritual.

Aqueles que se impressionam com a força…

Aqueles que se impressionam com a força do amor certamente não conhecem a misantropia, sentimento infinitamente mais poderoso e que, este sim, não se descola daquele que domina um segundo sequer. Cada aspecto da realidade o relembra e o reforça; não se lhe pode despojar para nenhuma atividade. O estímulo intelectual que proporciona é indescritível, e aquele que o experimenta vê-se sempre a aperfeiçoá-lo, a despeito de como viva e de quais ambientes esteja acostumado a frequentar. Se o misantropo concede uma oportunidade ao próximo, este reforça-lhe a misantropia; se não a concede, ele a reforça mesmo assim. Destarte vive-se quase sempre de maneira planejada, e cada ação que se executa ou se relega toma um sentido mais nítido e tem consequências mais facilmente mensuráveis. A misantropia amplifica cada ato e cada sentimento e torna de uma singularidade extraordinária quaisquer manifestações que porventura a façam transigir.

A Igreja da Misantropia

Despojo-me de minha modéstia para afirmar que ninguém jamais esteve tão apto como eu a fundar a Igreja da Misantropia. Possuo para tanto a completa fundamentação teórica e a prática de um sumo sacerdote. Mas confesso, com uma certa tristeza, que Karl Kraus daria um padre exemplar. Diz ele ter descoberto ser possível conviver com as pessoas em terra estranha, isto é, num ambiente em que não entenda uma palavra daquilo que dizem e lhes é impossível qualquer comunicação. Assim, o próximo realmente nos parece tolerável. Mas impressiono-me de não considerá-lo novidade, posto que isso eu mesmo já escrevi. É curioso como, em todas as vezes, dá-se exatamente o mesmo: sinto-me alegre por detectar a anomalia compartilhada, mas ela nunca me impressiona. Sou capaz de cada uma e todas as manifestações misantrópicas jamais concebidas; não há particularidade que se me escape, e empatizo com toda expressão de repulsa e distanciamento para com o homem. Banir por lei a linguagem, propõe Karl Kraus; permitir ao homem somente a manifestação gestual em casos de emergência. E eu apoio, é claro, sendo estas proposições que já partiram de meus próprios dedos. Mas esta igreja jamais prosperaria; e por mais que haja técnicas eficacíssimas de afastamento, como há propostas interessantes para a construção de muros que o separem do meio, ao misantropo só há e sempre só haverá uma solução definitiva — e esta, é prudente evitar.

O moralismo é o primeiro passo

O moralismo é o primeiro passo de uma trajetória intelectual que não se pode resumir ao moralismo. É preciso que o moralista dê um passo adiante, e supere as constatações provenientes da análise do mundo: ele deve transformar-se e despegar-se deste caso queira progredir. Mas é difícil concentrar-se em evoluir, superar, esquecer, colocando uma pedra sobre aquilo que um dia mereceu atenção; o fazê-lo parece como uma traição à própria natureza, uma negação do passado e uma desvalorização daquilo que a mente produziu. Julgamentos errôneos, porém. A vida intelectual é justificável somente enquanto se movimenta, e o intelectual somente enquanto se permite criar.