A chama da vocação

Talvez seja mesmo impossível explicar a um imbecil doutrinado na psicanálise, que dedicou a vida inteira aos interesses mais mesquinhos, cultivou as relações mais fúteis e jamais presenciou um ato nobre, um ato corajoso de assunção que contrarie aquilo que é conveniente o que é essa chama, esse impulso ativo que, uma vez manifesto no espírito, traça uma linha divisória na vida daquele que o experimenta. E é também inevitável que um sujeito como o primeiro utilize as lentes que possui para julgar ações alheias: de que outra forma poderia fazer? Assim que o próprio insulto é inevitável, e talvez tenha de ser perdoado por originário de uma incompreensão involuntária. De um lado, temos uma resolução inquebrantável, um espírito disposto às últimas consequências e a tudo largar pela missão que lhe parece a finalidade da existência; temos uma transformação por vezes tão completa que anula qualquer identificação com o passado. Do outro lado, temos um homem comum.

Talvez nada seria tão benéfico à filosofia moderna…

Talvez nada seria tão benéfico à filosofia moderna quanto inserir exercícios literários na grade curricular das universidades; quer dizer, estimular os candidatos a filósofos a escrever pequenos contos, pequenos poemas talvez, forçando-os a transformar filosofia em literatura. Obviamente, tal exercício seria uma confrontação direta com aquilo que se tem hoje como a única maneira aceitável de se fazer filosofia. E por isso mesmo seria ele tão benéfico. Não se trata de vender ideias pela arte, algo abominável, mas de clarificar o papel concreto da filosofia, isto é, inseri-la em questões concretas, mostrar que há entre ela e a vida uma ligação fundamental, não se resumindo a primeira a um jogo de construções abstratas, um jogo inútil para aquele que busca respostas para questões reais. Sem dúvida, seria um exercício de grande utilidade para os estudantes.

Há implicações veladas na personalidade…

Há implicações veladas na personalidade daquele que, pela filosofia, atinge a rigidez de caráter de um Sócrates, de um Sêneca, capazes de encarar a própria morte com serenidade e indiferença. A indiferença de alguém assim, na prática, não pode ser compreendida por aqueles que a não alcançaram, e por isso o discurso de tais sábios tende a machucar. Há algo de inaceitavelmente e assustadoramente antinatural nesta postura, que não solidifica senão após o aniquilamento de uma dimensão humana. Que seja sabedoria o blindar-se do mundo, o não ser afetado por nenhum de seus dissabores; mas este mármore imperturbável, esta materialização do pessimismo passivo, do não agir, não sentir, não querer e não sofrer, embora alcance uma vitória da razão sobre o instinto, opera, simultaneamente, uma mutilação humana, e talvez seja menos doloroso, para aqueles que o estimam e lhe estão em redor, que jamais se permita cantar tal vitória.

Há uma flagrante injustiça…

Há uma flagrante injustiça na maneira com que Nietzsche é pintado tanto por seus oponentes quanto por seus admiradores. Parece todos se esforçarem para ver, em cada detalhe de sua biografia, as exaltações que lhe encontramos na obra. É como se o Nietzsche homem fosse privado do discernimento e contendesse diariamente na vida como o fazia filosoficamente. Enxergam, em cada traço de sua personalidade, um desequilíbrio doentio, querendo fazer-nos crer que não fora ele lamentavelmente assaltado pela doença, tendo esta progredido lentamente desde o seu nascimento. Negam-lhe a razão, e nas tendências naturais de qualquer homem cuja vocação é o estudo sério, nas manifestações naturais de qualquer homem que experimenta um conflito interior, veem transtornos mentais. Há estudos que o defendem! Homens modernos, modernamente saudáveis, garantem-no doente! Um homem, pois, incapaz de sentar-se numa mesa e comportar-se publicamente: um louco. Faltam palavras para direcionar a estes imbecis…