É impossível que um moralista não aparente amargo

É impossível que um moralista não aparente amargo a mentes comuns, porquanto amaríssimas são as conclusões a que chega quando contrapostos o senso moral que lhe pulsa à realidade mundana. O ser moralista necessariamente acarreta essa predisposição a observações desagradáveis. Todo o seu trabalho é um esforço para encarar e esmiuçar aquilo que uma mente comum evita; e se avança, não o faz senão pelo desejo de esclarecimento e pelo dever de sinceridade. É por isso que, se um dia enfim abranda, se as linhas lhe passam a exibir uma serenidade quase beatífica, merece a nossa admiração e reconhecimento: isso jamais se dará sem que tenha vencido os problemas sobre os quais se debruçou.

É nos momentos em que o espírito cede…

É nos momentos em que o espírito cede e rebaixa-se que renasce impetuosamente a motivação que o caracteriza: deixar de ser-se evidencia, pelo contraste, o verdadeiro valor daquilo que é. Então, mais uma vez, as diretrizes e prioridades traçadas com estímulo renovado, que se seguem da conduta que prova-se novamente ideal. Já em casa, torna a satisfação. E disso parece razoável concluir que quedas esporádicas são necessárias para que se restaure a humildade inimiga da inércia, a humildade ansiosa por moldar-se e que, em se moldando, torna-se gradativamente melhor.

 

Vigny e Kafka

Linhas de Vigny:

Dans cette prison nommée la vie, d’où nous partons les uns après les autres pour aller à la mort, il ne faut compter sur aucune promenade, ni aucune fleur. Dès lors, le moindre bouquet, la plus petite feuille, réjouit la vue et le coeur, on en sait gré à la puissance qui a permis qu’elle se rencontrât sous vos pas.

Il est vrai que vous ne savez pas pourquoi vous êtes prisonnier et de quoi puni ; mais vous savez à n’en pas douter quelle sera votre peine : souffrance en prison, mort après.

Ne pensez pas au juge, ni au procès que vous ignorerez toujours, mais seulement à remercier le geôlier inconnu qui vous permet souvent des joies dignes du ciel.

É curioso como Vigny e Kafka, partindo de premissas semelhantes, chegam a conclusões completamente diferentes. A analogia entre vida e prisão, o absurdo da punição injustificada, a certeza da condenação… todos esses fatores, em ambos, são como obsessões de que eles se não conseguem desviar. O reconhecimento das próprias condições parece-lhes uma imposição da consciência. Nas mãos de Kafka, o enredo culmina de praxe em desespero; já em Vigny, aí está uma recomendação que soaria estranha a muitos de seus críticos: “remercier le geôlier inconnu qui vous permet souvent des joies dignes du ciel”. “Joies dignes du ciel”: isto, da pena do “pessimista” Alfred de Vigny! É verdade, é verdade: nem todos os críticos ignoraram-lhe esta face… Mas é possível ir além e dizer que, talvez, o próprio Kafka seria alvo de julgamentos precipitados. Será que, em Kafka, tal olhar seria impossível? Quer dizer: o último ato da vida de Kafka, o seu testamento, deixa-nos reticências. Mas não seria uma má hipótese conjeturar a espantosa resolução de Kafka como simples arrependimento de suas conclusões ou, ao menos, arrependimento de sua obra não deixar o esboço de uma conclusão diferente…

Embora em muito pareçam razoáveis as explicações orientais…

Embora em muito pareçam razoáveis as explicações orientais para as discrepâncias extremas de condições em que nascem os seres nesta terra, não parece fazer sentido o psicopata assassino renascer santo, ou o inverso. Quer dizer: onde está, pois, o elo que une naturezas tão diferentes? É muito difícil aceitar a doutrina do carma quando notamos indivíduos pagando por atos que não seriam capazes de cometer. Se uma mesma essência há de se manifestar em variadas circunstâncias, algo de si tem de subsistir para que seja identificável, ou seja, para que seja ela mesma numa circunstância diferente. Não parece plausível que, a cada vida, em se tratando de um mesmo ser, este desenvolva um temperamento que não guarda semelhança alguma com aquilo que foi. Se é assim, o que, então, o define? E como admitir a suposta “evolução espiritual” pela qual deve passar, se a cada vida, irreconhecivelmente, retorna à estaca zero? Para estas perguntas, o que há de respostas não parece satisfatório…