Quando a certeza não é possível

Quando a certeza não é possível ou, acaso, seja questão de índole, é preciso que o homem tenha coragem o suficiente para agir orientado por indícios. Um indício envolto em espessa penumbra tem de sê-lo satisfatório, é mister que ele se apegue ao pouco que tem — do contrário é trancar-se na inércia. Encontrar, pois, o indício! Encontrá-lo e agarrá-lo firmemente! Seguir-lhe o caminho sugerido e amparar-se na possibilidade — porque é esta, sem dúvida, melhor do que o nada.

 

Por mais irracional e desconfortável que seja…

Por mais irracional e desconfortável que seja, é forçoso, para aquele que vê, admitir que há coincidências tão acachapantes, tão incrivelmente expressivas, — embora por vezes de significado obscuro, — que o negá-las ou sequer calar-se sobre elas parece indigno do apreço à honestidade. “Coincidência” é termo incorreto, “acaso” uma justificativa que afronta a inteligência capaz de uma matemática simples, que logo taxa-o de absurdo inadmissível, o maior dos absurdos possíveis. Disto, lamentavelmente não se tira conclusões seguras, não se extrai certezas que esclarecem cabalmente o mistério, mas parece mais nobre dizer o que é visto com as palavras concebíveis em vez de negar o patente por incapacidade de expressão.

Linhas escritas são o registro no tempo de impressões duradouras ou não

A leitura atenta de vários volumes em sequência de Mário Ferreira dos Santos impactou-me tão fortemente que tive o impulso de revisar-me todas as notas a procurar bobagens. Contudo, é impulso que não posso permitir. Revisar-me o passado é destruir o que fui, apagar os vestígios de uma possível evolução. Linhas escritas são o registro no tempo de impressões duradouras ou não: mas são, todavia, as evidências da trajetória percorrida. Suprimir o que fui é deturpar o que sou: ação justificável não na mente de obsessivos pela coerência perfeita, mas sim na de impostores e canalhas.

A queda obrigatória

Diz Mário Ferreira dos Santos, em Filosofia da crise:

Consideramos como um fator de degenerescência de toda a construção do ser humano, aquele momento em que ela começa a subir os degraus do absolutismo. Esses degraus podem ser expostos da seguinte maneira:

1) uma doutrina é considerada como certa e eficaz;
2) como a mais certa e eficaz;
3) como a única certa e eficaz.

Ao alcançar esse terceiro ponto, toda e qualquer objeção é considerada herética. Não é mais possível, nesse momento, transigir com os adversários, porque a própria defesa da doutrina exige uma vigilância constante contra todos os opositores, e até contra partidários vacilantes, transigentes ou tíbios, e toda vacilação é uma ofensa aos princípios absolutamente VERDADEIROS, sobre os quais não se pode permitir o menor vislumbre de dúvida ou a menor suspeita.

E se essa doutrina ou sistema dispuser do poder físico, ela o exercerá inevitavelmente, empregando a força para combater opositores e partidários dúbios e vacilantes.

Não é possível descrever com mais precisão a práxis vigente no ocidente moderno. A prisão ideológica em que se meteu evidencia o zênite já atingido e a queda obrigatória. Tudo, tudo repetindo-se novamente… E este policiamento autoritário destes dias, como mostra Mário, não faz senão instigar uma reação contrária violenta, que acabará por destruir todos e cada um dos valores tidos como supremos pelos sacerdotes da intolerância. Tendo a inércia impossível, escalar degraus parece compulsório; mas, do topo, só há movimento possível para baixo.