O quebra-cabeça existencial

Já se foram duzentas páginas deste “Papus” e confesso não fazer ideia do que havia nelas. Desde o princípio, foi começarem as analogias infinitas, a matemática criativa, a semântica subliminar, os pantáculos, as tabelas que seguem-se de tabelas e tabelas, e coloco-me a dimensionar o tédio do deus que planejou tudo isso para um investigador como “Papus” desvendar-lhe a criação. Se foi assim mesmo, é certo que este deus deve ter explodido de alegria com o tal “Papus” que, montando o quebra-cabeça, livrou-o da solidão. É como se tivesse encontrado um companheiro para jogar. Porém, com a imparcialidade de um psicólogo, diagnosticaria que este deus está a um triz do suicídio.

O ocultismo moderno

Começo em Helena Blavatsky, — novamente, graças a Pessoa, — sigo por Éliphas Lévi, Max Heindel, A.P. Sinnet, e chego agora em Gérard Encausse, esse tal “Papus”. Que dizer? É incrível como sou resistente. Meu entusiasmo com o chamado ocultismo moderno durou pouquíssimas páginas. E mesmo assim sigo dando crédito aos autores, fingindo não estar farto desse vocabulário repleto de “mistérios”, “chaves”, “segredos”, analogias incrivelmente tediosas — para não dizer estúpidas… Leio-os e sinto a presença física de Voltaire, instigando-me a zombar dos reveladores que ocultam o próprio nome. Não, meu amigo, não o farei… Interessante lembrar que disse outro dia nunca ter experimentado a sensação de estar diante da revelação de uma verdade. De uma mentira, porém… calma, muita calma, que já cometeríamos a injustiça de misturá-los todos no mesmo saco.

Parece forçoso esboçar respostas

Imergindo-se em problemas, chega um momento em que parece forçoso esboçar respostas. Do contrário é desistir ou, ao menos, deixar de avançar. Muito se pode dizer das respostas em que, por exemplo, culminou a obra de Dostoiévski; o que não se pode dizer é que esta não tenha encarnado um ciclo completo. Nela estão representados problemas múltiplos em variadas manifestações, e para todos Dostoiévski aponta a solução —aceite-se ela ou não. Não há fugir: embora seja possível postergar o enfrentamento último, essa necessidade velada parece sempre à espreita a perguntar: “E então?” — e aparenta questão de honra apresentar-lhe uma conclusão.

Meditando com o Yoga sutra de Patanjali

Incomodado por não saber sânscrito, puxo uma tradução inglesa do Yoga sutra de Patanjali e dá-se uma cena espetacular. Naturalmente, puxo o Yoga sutra interessado em ler os sutras que o compõem. Mas não é o que ocorre. Abro o livro e o tradutor, após dizer-me o quanto é difícil traduzir o sânscrito, conta-me detalhadamente toda sua trajetória acadêmica, fazendo questão de citar cada um dos temas que estudou e se especializou, cada um de seus artigos publicados, teses de mestrado e doutorado, explicando-me em seguida como são ricas as filosofias indianas, como são bestas os tradutores que não estudaram como ele, que não se especializaram em tantas áreas como ele se especializou, que ignoram a metaética e que não traduzem com um método tão arguto e diligente como o seu. Nisto, sou arrastado por uma introdução de inacreditáveis sessenta páginas! Acabou? Não acabou. A obra começa e descubro que o tradutor é, também, comentarista, e que seus comentários não se situam no rodapé ou no final do texto, mas interrompendo as linhas do autor. Para cada sutra, — e há sutras que limitam-se a uma frase, — o tradutor anexa-lhe em seguida, não tendo sequer a humildade de diminuir o tamanho da fonte, de uma a sete páginas de comentários! Que é isso? Pergunto com sinceridade: como uma obra apresentada desta maneira pode ser vendida com o título original? Segui o comentarista até perceber que, definitivamente, estava diante de uma obra desfigurada, que gera tudo, menos a impressão da original. Ler um livro de sutras é pausar, após cada aforismo, e ruminá-lo em mente. Mas isso é impossível quando logo em seguida o tradutor enceta falação interminável! O efeito gerado é exatamente o contrário: a obra perde-lhe por inteiro o caráter sintético, vai-se-lhe embora a densidade, passa de uma coletânea de sutras para um extenso e prolixo estudo de hermenêutica e filosofia comparada. É isso o que puxei da prateleira para ler? Não, não é. Independentemente da relevância dos comentários, o comentarista proíbe-me de pensar e absorver diretamente a obra, desviando-me a atenção e simplesmente impedindo a obra de falar em sua cadência natural. Termina em vírgula um sutra, e encontro-lhe a sequência quando já nem lembro sobre o que falava. Abro o Yoga sutra e leio o especialista em metaética e filosofia da linguagem; abro o Yoga sutra e, após cada aforismo, em vez de meditar calmamente, tenho o impulso de levantar-me e berrar: “Cale a boca, homem! Respeite a obra e carregue para longe de mim sua mesquinha promoção pessoal!” Que maravilha… alcanço a proeza de fritar-me os nervos com um manual de meditação!