Velhice, doença e morte; velhice, doença e morte: as obsessões que pavimentaram o caminho de Buda rumo à “iluminação”. Mais do que olhos abertos, é preciso coragem para confrontá-las. Buda compreendeu que nada vale o pensamento que não incorre em ação: do raciocínio extraiu filosofia, desta pautou-lhe a conduta. Velhice, doença e morte: tudo o que vive condenado ao suplício, ao esgotamento e à supressão. Quer sempre a mente iludir-se; pois que padeça, amargue diariamente as conclusões do juízo, até que tenha de si arrancadas todas até a última ilusão! E assim, ensina o arguto e iluminado psicólogo, escapa-se do ciclo maligno que redunda sempre em sofrimento e destruição.
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Cahiers, de Emil Cioran
O meu estimado Emil Cioran disse, nestes Cahiers, — publicados postumamente e ainda não vertidos para o português, — que de um pensador sobra-lhe o temperamento. Bela observação! E noto que, quando penso em Cioran, o que relembro-lhe é exatamente o temperamento. Impossível não sorrir. Nestes Cahiers, onde está exposta a dimensão humana de um filósofo que concedeu ao pessimismo várias de suas melhores páginas, — ou que, como disse Fernando Savater, possuía vocação de herege, — estão praticamente todas as cenas que vêm-me em mente ao pensar em Cioran. São quase mil páginas que lhe dotam a obra de um colorido raríssimo: é o filósofo escrevendo para si mesmo, numa página, comentando Buda e Jesus Cristo, noutra acessos de raiva que experimentou em mercearias, ou situações incomuns que vivenciou. Como não sorrir ao ver um sábio, logo após um editor qualquer rejeitar-lhe um prefácio sobre Valéry que lhe custou duras horas de trabalho, exclamar para si mesmo “Terei vingança!”; ou ao ver um atleta dizer que, retornando de vinte quilômetros de caminhada, uma garota ofereceu-lhe o assento no trem; ou, ainda, ao ver um mestre do sarcasmo relatar que, conversando com Jean-Paul Sartre, ouviu do francês ser muito boa a sua “gramática romena”… Penso em Cioran e o que lhe recordo é o humor supremo, que lhe sobressai sobre todas as outras qualidades intelectuais. Cioran, talvez meu amigo predileto a acompanhar-me pelas trevas do pensamento, é também um dos que mais facilmente arranca-me um sorriso do rosto.
O contraste entre textos antigos e textos modernos
É incrível notar o contraste entre textos antigos e textos modernos. Há nos antigos uma inocência — ao menos, parece-nos ser esta a palavra correta — que nos causa estranheza. Não podemos compreendê-los: há textos que a nós soam como escritos por crianças, ou por seres provenientes de outra raça, habitantes de outro mundo. Mais: os antigos, em sua maioria, quase sempre buscavam versar sobre o essencial — algo raríssimo em tempos modernos, onde a literatura é consagrada ao corriqueiro. Os textos antigos distinguem-se pela expressão de uma admiração, de uma reverência para com a realidade que parece-nos inimaginável. O homem moderno é destituído da faculdade do espanto: para ele, a existência é tediosa e o mundo enfadonho, velhíssimo e banal.
Alegria e desgosto
Um sujeito que apanha regularmente a chicotadas é tomado de alegria sempre que o chicote cessa. Alegra-se muitas e muitas vezes durante a vida. Aprende, à força, a agradecer e a valorizar os momentos que sobressaem ante a sua condição natural. Já um rei… como agradá-lo? Não é possível: um rei nunca pode ser feliz. Um rei tem tudo, exceto aquilo que quer, e o que quer é a satisfação plena de seu desejo, que não tem limites. Raciocinando dessa forma, chega-se a duas conclusões: a primeira, de que a alegria exige um contraste positivo; a segunda, de que o desejo a impossibilita. Num rei, é impossível qualquer contraste positivo, posto sua condição jamais mudar significativamente para melhor. Quanto ao desejo, há de ser um Marco Aurélio ou, exatamente como se passaria a qualquer ser humano em suas condições, é forçado a vê-lo insuflar-lhe de um desgosto insistente e invencível.