O monstro moderno

Mário Ferreira dos Santos, sobre Nietzsche:

Era ele adversário do Estado, o monstro moderno, o Moloch dos nossos dias, o devorador de homens e de consciências, a mais brutal criação da fraqueza humana e que terminará por cansá-la totalmente, a ponto de, um dia, abominar todas as formas de opressão, e destruí-las com um ímpeto que fará estremecer as páginas da história. Não o poderá facilmente compreender esse homem de hoje, esse cativo que lambe as algemas, esse “Haustier”, esse animal domesticado, que se acostumou a adorar o monstro de que ele fala.

A nota data de 1957. Que dizer? Pouco mais de meio século, e podemos verificar a precisão da brilhante observação de Mário. O colapso do estado moderno é inevitável, entretanto… o “cativo que lambe as algemas” continua, passivo, a lambê-las, num estado de inconsciência admirável em que não exibe o menor sinal de esgotamento. A situação só fez agravar: o monstro cresceu, ampliou-lhe o domínio, e já dispensa qualquer pudor. A questão, porém, perdura estática: até quando? De um lado, a reação é inevitável; doutro, o despertar parece distante. O que resta evidente é que, como bem previu Mário, chegará o dia em que o “devorador de homens e de consciências” ver-se-á diante de uma explosão violentíssima e extraordinária, oriunda de uma letargia que aparentava perpétua.

Uma vida paralela

O artista do século XXI ou, antes, o sequioso da alta cultura necessita de uma espécie de vida paralela, de um destacamento do meio para que, sozinho, possa caminhar. A alta cultura repele a vida cotidiana moderna, o meio lhe é nocivo, hostil, e não há nada que se possa fazer para absorvê-la senão trancar-se em isolamento. Do contrário, é contaminar-se e perder a capacidade de distinção, apodrecendo como o fez a própria cultura. Se, de um lado, tamanho contraste pode evidenciar uma perda gradativa do papel, ou talvez da influência da alta cultura na sociedade, doutro, a nível individual, restam facílimas as decisões.

Antagonistas naturais

De um lado, a filosofia da unidade; doutro, a filosofia do acaso. Incompatíveis, antagonistas. E ambas encontram, é verdade, vistosa fundamentação. Privadas, contudo, da certeza, da prova cabal que anularia a argumentação contrária, digladiam-se inutilmente. Como notou Pascal, parece haver no mundo o suficiente para que qualquer um enxergue o que quiser. Dessa forma, a postura filosófica fundamental parece resumir-se no apego ou desapego à incerteza, no apreço aos sinais que podem satisfazer ou não; em suma, na reação do espírito ante o conhecimento adquirido.