A substância da vida é o tempo

A substância da vida é o tempo: viver não é senão lhe definir a aplicação, em escala menor, durante o espaço de vinte e quatro horas e, em escala maior, durante o intervalo indefinido de uma vida — e eu não passo de um homem-planilhas! De qualquer forma, a decisão imediata é sempre a mais importante e o planejamento, quanto mais tardio, tanto menos proveitoso. A verdade é que a distribuição do tempo envolve, em primeira instância, a capacidade de visualizar o resultado desejado que, não bastasse incerto, tem de se adequar às necessidades primárias e os anseios da consumação de algo que justifique o próprio existir. Geralmente, são esferas conflitantes e, geralmente, a primeira acaba sugando o grosso da substância vital. Conhecêssemos, ao menos, a circunstância do último suspiro e não houvesse tamanha indefinição quanto ao horizonte, tudo seria mais fácil: distribuir o tempo seria tarefa quase agradável e os frutos de uma vida seriam muito mais meritocráticos. Entretanto, a trama perderia em emoção e suspense. Parece dificílimo viver e não pecar, de um lado, por precipitação e, de outro, por covardia.

Não à trapaça linguística!

Leio cem páginas de Heidegger e atiro o volume ao espaço. Insuportável! Cem páginas estéreis envoltas na linguagem mais abstrata do universo, cem páginas de retórica que aparenta profunda, mas turva o pensamento, engana fingindo versar sobre as últimas verdades não sendo senão oca e evasiva. Terrível, terrível… Mas como foi prazeroso interromper a trapaça linguística! dizer não à falsificação da filosofia! Desculpem-me os idólatras, mas só enxergo valor na filosofia útil a alguém que, desesperado, encosta o cano de um revólver numa têmpora. Se bem que, em verdade, uma página de Heidegger basta para que qualquer um puxe o gatilho…

(PS: a publicação desta nota, como a de algumas outras, falhou no sistema. Agendado originalmente para 29-01-21)

A maturidade exige a experiência do desvio

Disse ontem e prossigo na ideia: se me dessem, aos quatorze anos, uma bomba nuclear, eu garanto que a faria explodir. Sem dúvida! Explodi-la-ia, no mínimo, para ver o que acontecia, pela curiosidade da explosão. Mas aí está: ninguém, aos quatorze anos, recebe de presente uma bomba nuclear. As outras bombas — todas que me passaram em mãos! — as explodi, e as que não tinha, mas vi, trabalhei por consegui-las e cuidei, também, que explodissem. Hoje, não tenho o menor interesse por bombas. Os maus elementos de quem aprendi e a quem lecionei, também não — majoritariamente. A mim tudo isso é assaz natural… A maturidade exige a experiência do desvio, da libertinagem, da transgressão. Mais do que isso: malícia é uma disciplina de aulas práticas. Mas onde quero chegar? Falei em maturidade: não se amadurece aos sessenta. Depois de uma idade, o homem limita-se a ser o que é.

O mundo que não existe mais

William Faulkner, em entrevista para a Paris Review:

There were many things I could do for two or three days and earn enough money to live on for the rest of the month.

Quê! Two or three days! Releio a entrevista perplexo. Só de imaginar que, há menos de um século, era possível viver o mês pintando casas por dois ou três dias, o sorriso desaparece-me da face. Dois ou três dias! E, hoje, é necessário trabalhar até quando se não trabalha. Exercito a matemática: quanto custa o quilo da carne? Restrinjo-me a dieta, atenho-me ao essencial: três dias por mês não pagam nem a semana! E o pior é enxergar o óbvio: não há escolha. É aceitar-se as energias e o tempo drenados a contragosto todos os dias por anos, décadas, para então olhar para trás em lamento…