O português e o inglês

Verter o português ao inglês é um trabalho de destruição de recursos sintáticos. A operação inversa, quase sempre um aniquilamento expressivo. Inglês em português é frequentemente terrível, e o contrário o mais das vezes maçante. Iniciei estas notas disposto a traduzir ao inglês tudo quanto escrevesse: não demorou para que eu desistisse da empresa e deliberasse, ao contrário, não traduzir nada, salvo estas notas. Já vamos a dois anos e dezenas de milhares de palavras vertidas, quando este tempo seria melhor empregado escrevendo mais linhas em português. Fico a calcular quanta frustração e dispêndio de tempo teria enfrentado caso tivesse seguido o plano inicial e traduzido os outros livros que publiquei… Glória a Deus! Disto a dúvida: escuso-me da obrigação velada ou levo ao final aquilo que comecei?

Declinações e Buda

Ponho-me a decorar declinações russas e penso em Buda. Minha mente é contrária, desde sempre, a decorar deliberadamente. Mas é impossível assimilar línguas com flexão de caso sem decorar declinações! Que fazer? Buda… certamente Buda não manejava nenhuma dessas línguas, salvo o páli — mas ao meditar, duvido que pensasse em suas declinações. Embora desconheça o caminho ao nirvana, sei como ninguém um caminho que torna o nirvana impossível, que expulsa o ser de qualquer nirvana imaginário… Prova-me, Buda, a tua superioridade! Aquila, aquilam, aquilae, aquilae

Saber inglês é dever do intelectual moderno

Saber inglês é dever do intelectual moderno. Em primeiro lugar, por ser a literatura inglesa a maior do mundo — isto é, a que possui em maior número e há mais tempo produz consistentemente autores de primeira linha; — em segundo lugar, por ser o que mais se aproxima de uma língua universal — ou seja, a língua de mais comum intercâmbio e, também, a língua da literatura especializada em grande parte das áreas do conhecimento; — finalmente, pelo fato de os ingleses terem traduzido tudo: amiúde é mais fácil encontrar uma tradução inglesa que um original francês, italiano ou espanhol, para não dizer de línguas menos populares. Saber inglês, portanto, não é somente facilitar a vida de estudos, mas obrigação posto a falta do inglês priva o estudante de muito do que há de melhor disponível. De tudo isso, o problema. O escritor de língua portuguesa, quanto mais se empanturra do inglês, mais deve lutar para que, em hipótese nenhuma, permita-o penetrar sua escrita. Uma língua cuja força, a simplicidade, é também a maior fraqueza: sintaticamente o inglês é limitado; se vertido ao português tem-lhe a pobreza escancarada. Más traduções do inglês são intoleráveis, e mesmo originais devem ser lidos com muito cuidado, de preferência intercalados com obras vernáculas, e a precaução deve ser idêntica à do químico que coloca luvas antes de trabalhar.

O português e suas infinitas anomalias gramaticais

O português parece-me, entre todas as línguas que conheço, a mais rica em anomalias gramaticais. Talvez por isso esteja entre as mais difíceis de se escrever bem. No português, há territórios imperscrutáveis a estrangeiros, territórios em que mesmo os nativos acham-se em desorientação. Que dizer, por exemplo, de nossos verbos abundantes, isto é, os de particípio duplo? Provam eles que o que se diz na rua sempre acaba pautando a gramática — ainda que a lógica esperneie. E que mais? Provam eles que a gramática portuguesa é frequentemente ingrata, porque o que se diz na rua hoje só irá para a gramática de amanhã. Os exemplos são infinitos. Em Portugal, por exemplo, já está mais do que consagrado o uso das variantes reflexivas do pronome se (si, consigo) referindo-se ao interlocutor de uma conversa. No Brasil, há um verdadeiro samba entre pronomes e verbos na função de 2ª pessoa do singular: a depender da região, diz-se “tu” a quem se diz “vai” no presente; utiliza-se o oblíquo “te” referindo-se àquele que se chama de “você”; conjuga-se, também, o imperativo na 2ª pessoa quando os outros modos verbais são conjugados na 3ª; entre inúmeras outras anomalias dignas de nota. Pois bem! Como estabelecer uma linha entre o certo e o errado? como se orientar? Sabemos que o uso, em última instância, dita a correção. Mas o artista que medir-se unicamente pelas ruas fará arte de segunda categoria. Se aferra-se à rigidez da gramática parecerá engessado, esquisito e artificial; se abraça o falar do povo soará inculto como ele e construirá linhas estética e eufonicamente horrorosas. Mas aí está o segredo: para o artista não há certo ou errado; há ferramentas, meios de expressão. O grande artista absorve tudo e tudo subjuga à sua arte. Vale-se da gramática quando lhe é conveniente, fazendo de idêntica forma com a linguagem coloquial — ele paira acima de ambas, e sua arte dá abrigo à linguagem em suas mais diversas manifestações.