Os poderes infernais, de Carlos Drummond de Andrade

Outro belo soneto de Drummond:

O meu amor faísca na medula,
pois que na superfície ele anoitece.
Abre na escuridão sua quermesse.
É todo fome, e eis que repele a gula.

Sua escama de fel nunca se anula
e seu rangido nada tem de prece.
Uma aranha invisível é que o tece.
O meu amor, paralisado, pula.

Pulula, ulula. Salve, lobo triste!
Quando eu secar, ele estará vivendo,
já não vive de mim, nele é que existe

o que sou, o que sobro, esmigalhado.
O meu amor é tudo que, morrendo,
não morre todo, e fica no ar, parado.

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A grande arte exige os grandes temas

O estudo apurado da técnica artística incorre no grande risco de turvar a motivação da arte na cabeça do autor. A beleza cria-se, fundamentalmente, de uma aguda percepção e não de uma motivação abstrata. Se a estética escapa à compreensão do tíbio racionalismo, não é consequência que, despegada da experiência, represente qualquer coisa. O efeito expressivo é amparado pela técnica, mas jamais será potente se calcado em frivolidades: para ser grande, a arte exige os grandes temas.

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Os modelos de metrificação de Said Ali e Castilho

É interessante comparar os modelos de metrificação propostos por Said Ali e Castilho. Por um lado, é difícil negar que o modelo de Castilho, de praticidade imensa, estabelece critérios assaz úteis e aplicáveis à interpretação de quase a totalidade dos versos metrificados em língua portuguesa. Entretanto, se comparamos ambos os modelos, já não entre si, mas com modelos de outras línguas, percebemos que a metrificação proposta por Said Ali permite uma interpretação mais coerente dos movimentos rítmicos tradicionais da poesia. Decompor um poema em unidades rítmicas (pés) em vez de decompô-lo em sílabas poéticas parece favorecer-lhe a apreciação enquanto composição ritmada. Considerando o fim do verso exatamente na última sílaba tônica temos, muitas vezes, de romper a cadência natural do verso, ainda inacabado. Há, sobretudo, composições que não permitem versos esdrúxulos, para citar um exemplo. E, sabendo do sucesso tremendo do modelo de Castilho, impressiona que uma contraposição frontal (e assaz pertinente) como a de Said Ali tenha passado praticamente ignorada entre os poetas da língua. Por quê?

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Olhos que não enxergam…

Acostumei-me, durante muito tempo, a mirar fixamente, quando à janela, o desagradável muro fronteiro à minha casa. Ali está tudo: o vandalismo, a cromática insossa, o medo materializado em cercas cortantes… E eu, obsessivo, seria capaz de representá-lo, à mão, em nível de detalhamento impressionante. Acima, a poluição elétrica; ao fundo, a janela quebrada… Todos os dias reparo, e todos os dias, há anos, encontro a mesmíssima paisagem. E eis que descubro que, alçando a vista, há diferente…

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