ABC da literatura, de Ezra Pound

Leio ABC da literatura, de Ezra Pound e encontro, entre uma exposição virtuosa e trechos lúcidos de um grande intelectual, o óbvio aparentemente ignorado:

Music rots when it gets too far from the dance. Poetry atrophies when it gets too far from music.

Que dizer? A busca por originalidade e novos meios de expressão na literatura várias vezes desaguou numa descaracterização da própria arte literária ou, em outras palavras, numa estética pior. Muito em decorrência de uma visão obsessiva no estabelecimento de leis, as diretrizes, as ferramentas capazes de dotar a construção literária de um caráter artístico caíram em desprezo, tornaram-se “antiguidades”. O problema, entretanto, só faz fugir do essencial: por que o arco de ação na dramaturgia? Por que a métrica na poesia? Porque são instrumentos que, se utilizados com destreza, diferenciam a arte literária do discurso falado, tornando-a esteticamente superior; são instrumentos capazes de entregar unidade à construção artística, capazes de produzir efeitos expressivos interessantes. O artista que os não conhece não será capaz de estabelecer critérios qualitativos para a própria arte, ou seja, não será capaz de melhorá-la, sequer avaliar sua qualidade estética, manejando algo de que ignora a substância. Obviedades, obviedades, conquanto extremamente necessárias…

The bad draughtsman is bad because he does not perceive space and spatial relations, and cannot therefore deal with them.

The writer of bad verse is a bore because he does not perceive time and time relations, and cannot therefore delimit them in an interesting manner, by means· of longer and shorter, heavier and lighter syllables, and the varying qualities of sound inseparable from the words of his speech.

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No quarto, só, é noite e a luz apaga…

No quarto, só, é noite. A luz apaga,
O crânio pousa, a placidez não vem…
Por que não dorme, enfim? Não sabe bem,
Mas quando deita sente arder a chaga.

Fechando os olhos, a consciência esmaga,
Tratando-lhe a tristeza com desdém,
Qualquer esforço é vão, nada detém
O espectro que faz toda noite aziaga.

Não há permita-se erro ser sepulto,
Perdura a culpa e o arrependimento
Jamais será remédio pro tormento…

Não há cura pro mal, sequer indulto,
Errando um ser condena-se ao suplicio,
E não sai o remorso nem co’o exício…

(Este poema está disponível em Versos)

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A poesia lírico-amorosa está condenada ao desaparecimento

A poesia lírico-amorosa, senão morta, está condenada ao desaparecimento. Essa é, sem dúvida, a conclusão que berra após uma observação apurada das últimas décadas. O que ocorreu não foi uma mudança no caráter dos relacionamentos, mas um sepultamento definitivo de quanto servia de inspiração aos versos que já nem comovem. Poderia citar o pensamento corrente, a psique socialmente aceita pregadora do desapego. Mas esta é demasiado frágil, só aplicável enquanto máscara da psique individual e só relevante enquanto manifestação da hipocrisia. O que ocorre, porém, é que as pessoas tornaram-se pratos de um cardápio sempre online e acessível a um toque. Distância, medo da perda e, principalmente, carência de meios e opções sempre atuaram como tonificadores de um relacionamento, a despeito das aparências. O lamento, num verso, não é senão a expressão do afeto por alguém que aparenta especial e insubstituível. Hoje, tudo isso acabou. E se o século vigente aparenta evoluído, veremos como reagirá quando exposto o terrível e imenso vazio aberto pela perda em massa dos vínculos afetivos — outrora fulcros formadores de sentido, — pelo endosso de soluções falsas e pela desumanização gradual do ser humano. Imagino crianças assustadas entupindo os consultórios psicológicos…

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Vivem pouco justamente os que aparentam viver muito

Bato estas notas, sempre, em ambiente estático, em completa solidão. Tudo rigorosamente imóvel, exceto meus dedos assanhados. Há pouco, pensei em Fernando Pessoa. Para o meu espanto, ele apareceu vivo, vivíssimo do meu lado. Como? É o que eu gostaria de saber. Havia pensado, pouco antes, em escrever o seguinte: “A existência só me é justificável como resposta aos autores que li, como a continuidade do que eles começaram”. E concluiria que, apesar de mortos, eles não morreram. Então Pessoa irrompe no meu quarto. É curioso: há um século atrás, ele estava, como eu, encerrado num quarto em qualquer canto de Lisboa, refletindo em solidão. Sabia ele da potência dos próprios versos? que resistiriam, vigorosos, à tirania do tempo? Sabia… o Pessoa sabia… E, naturalmente, aos olhos do mundo, encerrado num quarto, o poeta “deixava de viver”. Pergunto: e agora, e para o resto da eternidade, quem vive e viverá mais: o sujeito que “vivia”, ou o poeta, que “deixava de viver”? Um século depois, Pessoa, rompendo a barreira do tempo e do espaço, encontra-se em meu quarto. E se abro sua Ode marítima, serei tomado de uma euforia real e fortíssima, mais viva que qualquer outra sensação que uma pessoa (com “p” minúsculo) contemporânea poderia me gerar. E aí está o óbvio: vivem pouco — muito, muito pouco — justamente os que aparentam viver muito, aos olhos do míope convencional…

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