Este Firmino, pintado por Ferreira de Castro em A selva, é mesmo um personagem digno de nota. Um personagem tão tipicamente brasileiro, mas tão raro nesta literatura centrada em tipos que quase nunca superam a mediocridade. É um tipo que, embora pobre, não é caracterizado, ou melhor, não comove pela pobreza ou pela privação material, mas por essa indefinível inocência, que aceita e encara a dura vida com inabalável boa disposição; é pela honestidade e simplicidade plenas, quase irreais; é, enfim, pelos valores morais que sobejam em meio à falta dos materiais. Firmino lembra um pouco os mujiques russos, cuja admiração já rendeu críticas a figuras como Tolstói e Dostoiévski. A verdade é que a bondade e a humildade que deles emana é mesmo admirável; e sua veracidade, no mínimo, tão real quanto romantizada.
Tag: literatura
É mesmo impressionante contrastar…
É mesmo impressionante contrastar a aparência inofensiva das letras com o seu poder maravilhoso de evocação. Em verdade, é inigualável a capacidade que elas têm em descrever precisa e detalhadamente, ensejando a mente a produzir imagens vivíssimas e sempre recordáveis. É pensar um pouco e rever a Petesburgo de Dostoiévski, sombria e coberta de neve, com tavernas abertas e cocheiros a passarem para lá e para cá; o sertão brasileiro, os subúrbios de Londres, Lisboa e o Alto Minho… tudo isso aparece com vivacidade impressionante, acompanhado da carga emocional proveniente do cenário evocado. Os numerosos personagens, suas escolhas e seus percalços, a atmosfera sempre particular que emana de cada obra… É, de fato, graças às letras, uma vida criada, mentalmente vivida e assimilada, cujas impressões se recordam para sempre. E tudo isso insuspeitável para aquele que não lê.
A selva, de Ferreira de Castro
A árvore solitária, que borda melancolicamente campos e regatos na Europa, perdia ali a sua graça e romântica sugestão e, surgindo em brenha inquietante, impunha-se como um inimigo. Dir-se-ia que a selva tinha, como os monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de todos os lados. Nada a assemelhava às últimas florestas do velho mundo, onde o espírito busca enlevo e o corpo frescura; assustava com o seu segredo, com o seu mistério flutuante e as suas eternas sombras, que davam às pernas nervoso anseio de fuga.
É curioso ter sido um português, e não um brasileiro, a escrever este romance impressionante. Mas, pensando um pouco melhor, só mesmo um europeu seria capaz de escrevê-lo, colocando em palavras todo o espanto perante esse monstro vegetal, variadíssimo embora compacto, embora aparente uma muralha verde uniforme e infinita, impenetrável, indefectível. Só mesmo um europeu para vê-lo e confrontá-lo com a tão apregoada paz da paisagem campesina, aqui impossível. Mas muito além desta vitalidade agressiva, impiedosa e insaciável, que ladeia rios de largura descomunal, ninguém melhor que um forasteiro para colocar em termos justos o drama humano experimentado neste meio. Quando o impensável realiza-se de contínuo, a mente acostumada acaba perdendo a capacidade de se impressionar.
Todo prefácio é mais ou menos inútil
Todo prefácio é mais ou menos inútil, e por sê-lo de praxe, é natural que, desde a primeira linha, tenda a entediar o leitor. Quer dizer: se algo realmente importante há de ser dito sobre a obra, que seja dito nela. Contudo, a prática legitima os prefácios, ainda que raramente se provem úteis. Mas há prefácios, Deus!, há prefácios que, não satisfeitos com a própria inutilidade, querem porque querem comprometer a obra que ainda nem começou! Nada há de mais irritante do que essa exibição ociosa de erudição, que enche as linhas de termos estrangeiros e pretende expressar uma profundidade que a própria obra não foi capaz. É lê-los para imbuir-se de uma antipatia imediata e cem por cento desnecessária para com o autor. A pergunta é: por que, meu Deus, por quê?