A grande obra literária não sai sem que haja…

Diz Ferreira de Castro, sobre a escrita de A selva:

Era das seis e meia às oito da noite, depois de haver estendido num divã, durante alguns minutos, a fadiga trazida, como um fato de chumbo, do magazine e do jornal, que me embrenhava na Amazónia. E nem todos os dias, porque a vida tinha ainda mais exigências e outras vezes eu regressava a casa tão exausto, tão saturado de papel em branco e de papel impresso, que me faltava disposição, frescura e forças para retomar a minha pena.

Este tipo de relato, para além de desmontar a romantização da escrita, é também mais uma evidência de que a grande obra literária não sai sem que haja uma motivação descomunal, uma necessidade absoluta e irracional de escrevê-la, que suplanta pela força todos os possíveis obstáculos. Tomar consciência do cenário descrito por Ferreira de Castro diante do romance finalizado nos inclina a creditá-lo a algum milagre. Mas, decerto, nas grandes obras há menos milagre do que essa violentíssima sensação de dever.

É o compromisso de não desistir…

É o compromisso de não desistir o início e o prenúncio da obra literária. Sem ele, o que se faz não chega a ser obra, mas marca apenas algo passageiro e, igualmente, descartável. É somente esse compromisso o que sustentará o esforço quando as circunstâncias o sabotarem, quando faltar a própria vontade de escrever. É ele que motiva o hábito, e é somente ele que restaura a normalidade quando o hábito, violado, transmuta um estado de inércia produtiva num absoluto torpor.

Este Firmino, pintado por Ferreira de Castro…

Este Firmino, pintado por Ferreira de Castro em A selva, é um personagem digno de nota. Um personagem tão tipicamente brasileiro, mas tão raro nesta literatura centrada em tipos que quase nunca superam a mediocridade. É um tipo que, embora pobre, não é caracterizado, ou melhor, não comove pela pobreza ou pela privação material, mas por essa indefinível inocência, que aceita e encara a dura vida com inabalável boa disposição; é pela honestidade e simplicidade plenas, quase irreais; é, enfim, pelos valores morais que sobejam em meio à falta dos materiais. Firmino lembra um pouco os mujiques russos, cuja admiração já rendeu críticas a figuras como Tolstói e Dostoiévski. A verdade é que a bondade e humildade que deles emana é mesmo admirável; e sua veracidade, no mínimo, tão real quanto romantizada.

É mesmo impressionante contrastar…

É mesmo impressionante contrastar a aparência inofensiva das letras com o seu poder maravilhoso de evocação. Em verdade, é inigualável a capacidade que elas têm de descrever precisa e detalhadamente, ensejando a mente a produzir imagens vivíssimas e sempre recordáveis. É pensar um pouco e rever a Petesburgo de Dostoiévski, sombria e coberta de neve, com tavernas abertas e cocheiros a passarem para lá e para cá; o sertão brasileiro, os subúrbios de Londres, Lisboa e o Alto Minho… tudo isso aparece com vivacidade impressionante, acompanhado da carga emocional proveniente do cenário evocado. Os numerosos personagens, suas escolhas e seus percalços, a atmosfera sempre particular que emana de cada obra… É, de fato, graças às letras, uma vida criada, mentalmente vivida e assimilada, cujas impressões se recordam para sempre. E tudo isso insuspeitável para aquele que não lê.