A língua entranha-se no próprio pensamento

Nunca escrevi uma linha em inglês, entre as centenas de milhares já saídas de minha cabeça, que não fosse a tradução de um pensamento concebido em português. Nem mesmo num e-mail. E imaginar a batalha travada por tantos escritores do último século, que adotaram voluntariamente uma nova língua para criar literatura… Não se pode conceber um escritor para o qual a língua se limite a um veículo de expressão. A língua entranha-se no próprio pensamento, que através dela se constrói. A estrutura lógica do pensamento não se calca senão na estrutura sintática da língua em que é modelado; são ambas inseparáveis, não podendo a primeira medrar sem a segunda. As palavras, em diferentes línguas, sucedem-se e organizam-se de maneiras distintas; uma evidência não de uma diferença formal, mas de uma distinção entre o gênio dos homens que nelas se desenvolvem. Alterá-lo, já velho, parece um choque de tremendas proporções.

A discussão sobre a cesura

A discussão sobre a cesura pode facilmente ser suprimida da versificação portuguesa, sem prejuízo nenhum para a compreensão da técnica poética. O querer abordá-la, aliás, é o erro em que recaíram muitos estudiosos, que acabaram por meter-se em situações dificílimas, visto não haver que falar em cesura ante versos balizados apenas pela contagem silábica, como a maior parte dos praticados em português. Nestes versos, o risco de falar em cesura é confundi-la, como tantos fizeram, com o simples acento. A cesura só se justifica quando corta, e cortar é separar, dividir, estabelecer limites dentro do verso. Faz sentido enquanto impacta a técnica construtiva, e é absolutamente ociosa quando não indispensável para a sua compreensão. Em português, o que se percebe é que, salvo nos chamados versos compostos, pouco praticados e muito condenados por incompreendidos, nos quais hemistíquios independentes exigem uma cesura clara que os delimite e lhes faça a técnica inteligível, não há necessidade de se falar em cesura, e assim evita-se muita confusão.

 

Passam sem deixar legado…

É um fato espantoso este de que, no Brasil, os poucos grandes intelectuais, os verdadeiramente grandes, passem sem deixar legado. Talvez seja algo único a nível mundial. Em todos os países onde se pensa e se escreve, é possível traçar precursores e sucessores, é possível colocar numa linha do tempo os grandes nomes e seus influenciados, é possível, em suma, notar que um grande espírito ecoa e ecoa vistosamente após morrer. No Brasil, não. No Brasil o grande intelectual desaparece tão espetacularmente como surge. Nem um Nelson Rodrigues, de sucesso estrondoso e inédito, foi capaz de transmitir algo de si a outra cabeça pujante. Morreu como morreram os outros: enterrando consigo o gênio criador.

Os velhos tratadistas

É divertido imaginar como reagiriam os velhos e rigorosíssimos tratadistas dos séculos XVIII e XIX caso soubessem que em pouco viria à luz, sob aplausos nunca dantes testemunhados, uma poesia cuja receita resume-se a dizer tolices em versos sem métrica, sem ritmo, sem pontuação e sem maiúsculas. E imaginá-los a cotejar as tão criticadas insubmissões românticas com isto! Mas o mais curioso, e talvez demasiado patente para ser ignorado, é não ter o fenômeno se resumido à poesia, abrangendo também e a música e ainda mais escandalosamente as artes plásticas. Impôs-se o homem comum e impôs a todas as esferas as suas preferências, as suas capacidades e as sua visão de mundo. Reclamou para si todos os meios, apropriou-se do melhor posto em todas as funções. É consumada a vingança após tantos séculos de opressão!