Dois escritores sinceros deveriam cultivar mutuamente um sentimento semelhante ao que deveria haver entre dois adversários políticos bem-intencionados: um sentimento de respeito e identificação. Em ambos os casos, porém, são raríssimas as exceções que sobrepujam a mesquinharia corriqueira. Deixando de lado superficialidades como estilo, escolas, gerações, salta aos olhos o fato de que dois escritores, sejam eles quais forem, possuem um elo que os diferencia do restante dos homens, ambos fizeram uma escolha idêntica perante o problema da existência, e o natural é que tal distinção se convertesse numa afinidade. Muito mais concordam em escolhendo a literatura como veículo de expressão da consciência que divergem em aspectos exteriores da vocação. Admiti-lo, contudo, é dificílimo e parece exigir uma virtude que poucos deles possuem.
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Aqueles que resumem a poesia à técnica…
Aqueles que resumem a poesia à técnica têm, atualmente, uma bela oportunidade de enxergar o quanto a técnica, sozinha, é inócua. Em português, talvez não haja poetas mais imitados que Bandeira, Pessoa e Drummond. Há, inclusive, ótimas imitações, imitações que evidenciam habilidade. Mas todas elas parecem carecer de algo, e este algo nos demonstra que não se pode imitar o Manuel Bandeira, o Fernando Pessoa e o Carlos Drummond de Andrade porque, em suma, não se pode ser o Manuel Bandeira, o Fernando Pessoa e o Carlos Drummond de Andrade. Vemos a imitação e, ainda que ela seja boa, é imperfeita — e acabamos, sempre, sempre, preferindo o original ao imitador. Somente a técnica não basta, a poesia exige o estro que deriva do individual.
O escritor estará perdido caso não sinta…
O escritor estará perdido caso não sinta uma atração irresistível pela língua, que o obrigue a estudá-la ainda que não queira, numa prática cuja abstinência se manifeste num profundo desconforto. Se é isso predestinação, não faz diferença. O certo, porém, é que não suportará os obstáculos e frustrações da profissão caso não se sinta a evoluir pelo estudo prolongado ao infinito, só possível com uma tolerância às letras que melhor se definiria como uma paixão. Se a elas se acorrenta e não se sente à vontade, é preciso que, no mínimo, sinta a satisfação característica do cumprimento de um dever.
O que a escrita proporciona
O que a escrita proporciona não se alcança pela vida: ação de nenhuma espécie pode igualá-la ou substituí-la. De início, a ordenação e expressão do pensamento — o passo adiante à leitura; a consolidação do aprendizado e do raciocínio. Depois, o caráter reflexivo do processo: ainda que fosse possível discursar pelo tempo que se escreve e sobre aquilo que se escreve, o discurso é radicalmente diferente da escrita por não permitir, ou melhor, por não exigir a revisão, que resume-se a uma reflexão aprofundada sobre aquilo que se ensaiou exprimir e uma decisão quanto à sua expressão mais precisa. Por individual, a escrita incentiva a autoanálise, conjugando-a a uma ação que se materializa no registro do pensamento. Destarte, para aquele que escreve, pode funcionar simultaneamente como desabafo e meditação. Nada disso, porém, expressa os principais efeitos do processo, que assim poderiam ser resumidos: crescimento e transformação.