Diversão e sorte

É divertido imaginar Fernando Pessoa a pegar um guardanapo num boteco, rabiscar algumas linhas num garrancho quase ilegível e atirá-lo, aos risos, ao seu grande baú. E passar a vida rindo ao repetir infinitas vezes a mesma cena, imaginando o trabalho monstruoso que estaria delegando a homens que sequer conheceu. Deixar, pois, uma papelada gigantesca e desorganizada, e que se virem os editores! É algo sem dúvida divertido e tentador. Contudo, Pessoa, que admiravelmente transformou a desorganização em método, teve a sorte, primeiro, de encontrar editores, e, segundo, de encontrá-los competentes. Alguém que se arrisque a seguir-lhe o exemplo deve, portanto, ter muita fé, além de desenvolver essa invejável capacidade de defrontar uma bagunça aceitando-a como aquilo que dedicou a vida a produzir.

O papel da criatividade numa obra

O papel da criatividade numa obra é simplesmente direcionar o esforço. Este, e não aquela, é que fará com que a obra se concretize. Naturalmente uma obra em que a primeira não brilhe parecerá fraca: mas ainda assim é uma obra concretizada, algo que nunca terá aquele que idealize o papel da criatividade julgando-a capaz de materializar-se desprovida de um trabalho maçante. Estimula-se o cérebro e este aponta caminhos: o percorrê-los, porém, é feito pelas pernas.

São indescritíveis estes momentos…

São indescritíveis estes momentos em que a mente deflagra semanas de trabalho criativo num único rompante. É incrível como as ideias brilham com clareza e vão se amontoando rapidamente em frases, que se tornam páginas, até um ponto em que cessam não por se haverem esgotado, mas para que os olhos possam admirar, incrédulos, o quão produtiva foi a sessão de trabalho. Tudo impressiona, desde a espontaneidade à abundância da manifestação, que se dá sem que o espírito pareça se esforçar como de hábito, e consequentemente se dá e não gera cansaço. Alguns artistas já disseram que tal experiência assemelha-se a um estado de semilucidez, em que como uma força alheia ao próprio controle parece fazer o trabalho. Talvez semilucidez não seja o termo mais apropriado, visto que em tais momentos dá-se uma sensação pulsante de epifania, e a mente parece lúcida e límpida como nunca esteve. E então, por raros que são, é aproveitá-los ao máximo, alegrando-se por quanto durem e sabendo que nem sempre eles estarão à disposição…

A representação da realidade

A representação da realidade parece mesmo o exercício literário essencial; quer dizer, deixando de lado as teorias estéticas, simplesmente transformar em literatura a experiência ou a observação. Com o tempo, ficam evidentes os limites que a própria realidade oferece, e então o artista poderá optar por dar um passo adiante. É curioso observar que as obras mais altas são frequentemente originárias desta motivação: alcançar pela arte aquilo que a realidade não permite. Parece haver, nos artistas tomados por esta obsessão, um ponto na vida em que a realidade se esgota, ou no mínimo torna-se insuficiente. Daí que todo o treinamento prévio é empregado a tornar a criação mental uma realidade literária tão patente quanto aquela motivada pela experiência direta. E ver que, em muitos casos, a primeira ainda consegue se sobressair.