São as pedras que definem o valor

Quando notamos exemplos tão comuns como o de Augusto dos Anjos, isto é, exemplos de uma mente que brota luminosa e independente, parecendo ignorar, senão preterir aquilo que é tido como fundamental, e notamos reações que costumam acompanhar este fenômeno, inclinamo-nos a concluir que são as pedras que definem o valor de um artista. É curioso como parece sempre, sempre a individualidade exigir um destacamento; individualidade esta que pode ser também chamada de essência ou identidade. E mesmo os artistas que cedem a estas idealizações conjuntas, a esta conformidade geradora de aplausos, têm de encarar um momento, talvez o momento, em que são como forçados a separar-se de todos e seguir adiante solitariamente, a despeito do que os outros possam pensar ou dizer. Tais reflexões só nos levam a questionar se servem estas associações literárias de algo que não evidenciar-nos quais são as ovelhas e quais são os artistas de valor.

O artista individualiza-se na expressão

Se o artista se limita, como muitos têm-no dito, a dar novas formas a ideias antigas, é de se concluir que ele individualiza-se na expressão. Há um fundo de verdade na assertiva de muitos escritores que diz uma narrativa resumir-se no arco de ação, sendo todo o resto secundário. Porém, é de se notar que o enredo dá-nos uma visão o mais das vezes vaga do artista, que não pode ser resumido num diagrama. Para vê-lo, para conhecê-lo, para identificá-lo, é preciso que vejamos como ele se expressa, e não o que está sendo expresso. Tal percebemos mesmo num exemplo emblemático como Dostoiévski, cujas obras possuem arcos dramáticos tão bem definidos que Nabokov taxou-o de dramaturgo. Dostoiévski revela-se, antes, nos períodos longos, conturbados, intensos e tumultuosos. Não é preciso prosseguir.

Novamente o “bloqueio criativo”

Causa riso a falta de criatividade destes roteiristas que, ao representar um escritor, precisam obrigatoriamente descrever um período em que ele experimenta o tão falado, tão romantizado e tão ridículo “bloqueio criativo”. Todos os profissionais de todas as áreas possuem processos, possuem método, possuem uma sistemática de trabalho que os permite obter resultados a despeito de oscilações de humor, de ânimo e de criatividade; exceto, é claro, esta besta do escritor, que insiste em sentar-se diariamente diante de uma tela branca, sem ter absolutamente nada planejado. É lamentável dizê-lo mas, infelizmente, esse tal “bloqueio criativo” simplesmente não existe para escritores profissionais. Sentar-se diante de uma tela branca é somente amadorismo; e o escritor profissional que o faça não faz senão agir como amador. Não é preciso muita experiência para perceber que o processo de ideação de enredos, capítulos e poemas pode ser executado em grande parte longe da mesa de trabalho, relaxadamente, em ambiente por vezes mais propício para a criação. Não é preciso muita experiência, também, para perceber ser mais fácil executar um plano que planejar do zero e, em seguida, executar o planejado. Não, não… é preciso continuar representando o escritor como uma besta, que teima em sentar-se diariamente para resolver todos os problemas de uma só vez, o escritor que se senta e aguarda que desça do céu um anjo e lhe guie a mão… Que piada!

O prenúncio da queda

Há um trecho interessantíssimo de My first wife, em que Wassermann descreve o estado psicológico que prenunciou a queda de seu protagonista: este, dado momento, passou a idealizar um ente real, isto é, passou a confundir uma pessoa viva com uma criação imaginária. É curioso que supõe Wassermann ser tal deslize fraqueza de escritores, habituados a fazer personagens de seres reais. Erra Wassermann, embora seja a suposição interessante. Porém não é tal arapuca destinada somente a escritores: quem caiu, pois, foi não o Alexander escritor, mas o Alexander homem. Há muitos e muitos exemplos semelhantes… A idealização feminina é um traço naturalíssimo do homem. Parece haver, se não uma necessidade, um curso psicológico natural quando este cria um laço e se deixa levar pelo sentimento. É como se a experiência tivesse de se estender no plano mental que, mais duradouro e presente, acaba sobrepondo-se a ela. Caímos todos nós, caro Wassermann, todos nós… embora nem todo abismo tenha a mesma profundidade.