Registrei, nestas Notas, o quão maravilhado fiquei ao percorrer o diário de três meses mantido por Pessoa aos vinte e quatro anos. Lembro-me de tê-lo comparado a mim mesmo nesta idade, e ter dito que sua rotina, a um animal de minha espécie, parecia literatura. Que dizer, agora, ao ler a mesma fase descrita por Richard Zenith? Fernando Pessoa, sem dúvida, era muito mais preocupado que eu com a posteridade. Queimar em meses uma herança que lhe poderia custear, segundo o biógrafo, uma vida modesta por muitos anos; imerso em dívidas, rejeitar frontalmente a ideia de ter um emprego “normal” e, em vez disso, escrever uma carta pedindo dinheiro a um filantropo multimilionário… É este o tipo de atitude que faz valer uma biografia! E pensar que nunca me deu na cabeça ideia semelhante! Em vez de enviar currículos, enviar cartas pedindo dinheiro! Não há discussão possível sobre quão mais divertida é uma biografia como essa: como compará-la a outra de alguém que opta por bater ponto de segunda a sexta, em evidente falta de criatividade? Para nem mencionar a herança, que incinerada estupidamente faz com que a biografia se nos torne muito mais interessante…
Tag: literatura
Poucas coisas são tão deliciosas…
Poucas coisas são tão deliciosas quanto planejar e antever, neste ato, tudo ocorrendo conforme o previsto. E então permitir-se navegar nas plácidas águas do otimismo, alegrando-se antecipadamente porque o planejamento haverá de correr bem. Que satisfação! O melhor é poder fazê-lo sempre, e sempre usufruir desta sensação expansiva e revigorante que só a inocência é capaz de entregar.
A literatura não precisa de leitores
A literatura, ao contrário do que pode parecer, não precisa de leitores para que sobreviva. Em verdade, não precisa de nenhum leitor, nunca — basta-lhe um punhado de artistas verdadeiros. Enquanto houver alguém, como Pessoa, a enxergar num Antero um irmão de espírito, a literatura perdurará. E é indiferente que a humanidade desconheça tais homens, que a esmagadora maioria nunca lhes ouça uma palavra: basta que um deles nasça, e cumpra-lhe a missão de colocar mais um elo na corrente.
A inteligência que se manifesta pelo estilo
É curioso como as traduções, por mais que fiéis quanto ao sentido do texto, por mais que gramaticalmente corretas, quase sempre falham em transmitir o estilo, ou melhor, a inteligência que se manifesta pelo estilo de um autor. Há algo quase sempre intraduzível de um idioma para outro, que é a organização criativa das frases que explora não somente a sintaxe, mas a semântica particular do idioma em que se discursa. Assim que a tradução o mais das vezes soa estranha, quando o tradutor prudentemente opta por transmitir o sentido, em detrimento do estilo do autor traduzido. Para fazer o contrário, é preciso permitir-se uma liberdade que estará em apuros para livrar-se da falsificação.