Voltaire, mais do que ninguém, tinha de crer

Voltaire, mais do que ninguém, tinha de crer na existência de uma entidade superior que o concedeu a graça de acertar um cavalo premiado e desfrutar de uma estabilidade que, à esmagadora maioria dos mortais, parece fábula. Voltaire, Voltaire… tu foste redondamente ingrato! E vejam só! Não bastasse este contrassenso, temos aí uma multidão de Boehmes que, sem iluminação, sentem-se iluminados. Tudo isso parece-me extraordinário. Seriam consequências da esperança? estaria esta calcada numa necessidade, e portanto ausente no eminente sortudo? poder-se-ia, assim, classificá-la como um prêmio? Talvez, talvez…

O escritor pode dormir até no chão…

Foi Faulkner, creio, quem disse que o escritor pode dormir até no chão, mas precisa de um lugar decente para trabalhar. A ideia é interessante em muitos aspectos. Primeiramente, por evidenciar necessária uma seriedade no lidar com o próprio trabalho; caso contrário, dificilmente se fará algo de valor. Ter um local “decente” para o trabalho, ainda que não haja condições decentes no restante da vida, é uma mostra de prioridade, de respeito pela própria ocupação. Psicologicamente, é saber que há o momento mais importante do dia, o momento para o qual a rotina é moldada e os esforços devem convergir. Com isso, vários problemas são superados. Há outro aspecto digno de nota: o conforto de um local “decente” confrontado com o “dormir no chão” é a satisfação para alguém que, acostumado a condições inadequadas, acomoda-se num ambiente propício e estimulante. Uma cadeira razoável, uma mesa, luz e silêncio; um horário definido e um compromisso gravado na pedra — assim, soterra-se as desculpas oriundas da fraqueza mental.

A criação de amigos imaginários

Como sabiamente recomendou Fernando Pessoa, a criação de amigos imaginários, o exercício de conversações mentais que jamais seriam efetivadas em vida, a realização do impossível pela mente, tudo isso, para além dos benefícios provenientes das novidades infinitas, acarreta contribuições inestimáveis para a organização do raciocínio. É uma prática que testa limites, expõe contrapontos, alastra horizontes, além de suprir a carência oriunda da limitação da experiência. A mente sai fortalecida porque exercitou-se e conheceu mais, o pensamento toma contornos mais sólidos, e o hábito, com o tempo, converte-se numa salutar, prazerosa e insubstituível necessidade psíquica e existencial.

Parece que os traços colocados por Dostoiévski…

Parece que os traços colocados por Dostoiévski, especialmente, na personalidade de Míchkin seriam inconcebíveis para alguém que nunca os observou atuantes na vida real. Inconcebíveis porque pareceriam absurdos e nada convincentes. Mas aí está: essa inocência que aparenta não sendo estupidez, essa absoluta falta de espanto, essa benevolência sem limites, esse falar que erra na escolha das palavras, esse agir meio tímido, meio confuso, que parece indeciso e tanto gera estranhamento… Toda essa complexidade que sempre aparenta aquilo que não é, somada ao olhar de quem sabe e aceita, sem medo, sem surpresa, sem julgamento e sem reação, induz quem a observa a uma perplexidade que a lógica é incapaz de explicar. O raciocínio não admite o que vê e, faltando-lhe explicação melhor, põe tudo na conta do desvario e do absurdo. Míchkin, porém, é real, e contrariando as expectativas de uma raça aprisionada na mesquinhez de espírito, mostra que a alma humana, elevando-se, despega-se do que lhe prende ao chão.