A literatura, para ser agradável, deve escusar-se do julgamento e da expressão de tormentos. Assim afaga, em vez de agredir o leitor. Mas convém perguntar: que espécie de artista optaria por semelhante postura? ou antes: como justificar o impulso artístico escrevendo agradavelmente? O que parece é que a literatura agradável é, também, a literatura dissimulada, a que carece de sinceridade e verve, a que enfastia pela futilidade —a despeito de sua “leveza”. Disso conclui-se que é improvável que o artista sincero não suscite desconforto e, por conseguinte, não angarie uma forte rejeição.
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Uma leitura destruída por um tradutor
Continuo impressionado com a façanha de um tradutor que arruinou-me a experiência com o Yoga sutra. Não me contive e pesquisei sobre o homem: encontrei, no site de uma universidade britânica, uma foto em que pude vê-lo, careca e sorridente, acima de um longo texto que detalha tudo quanto ele estudou desde o berço e todos os seus veneráveis títulos acadêmicos — e para ver como as aparências enganam: já estava a dizer que o sujeito lembra Buda! O meu impulso foi buscar uma maneira de contatá-lo, um telefone, e-mail ou qualquer outra coisa. Logo desisti da ideia, mas o espírito impelia-me a dizer-lhe: “Senhor mestre doutor, os seus comentários são simplesmente insuportáveis! Ler a sua tradução do Yoga sutra é como tentar assistir a um filme com alguém ao lado pausando-o a cada cena para explicar-lhe todos os detalhes, a filmografia do elenco, o contexto cultural da história, a fase exata do ciclo menstrual da esposa do diretor no ato da filmagem… tudo isso enquanto desejamos simplesmente que o filme aconteça, que uma cena siga em sequência da outra, para que possamos conectá-las, entendê-las, e travemos contato direto com o filme! Mas o senhor, não!, o senhor não o permite de jeito nenhum! o senhor pausa o filme a cada fala, para cada frase o senhor quer explanar, de imediato, a semântica das palavras, o significado subliminar das inflexões, as conotações simbólicas do diálogo… Senhor, faça um favor ao mundo: pare de comentar livros! Pare, por favor, pare imediatamente! Exima os leitores dos seus comentários!”
Um único verso acurado salva o dia
Se a prosa entrega alguma satisfação por fazer que pareça o trabalho produtivo, não passa nem perto do verdadeiro prazer que é compor um verso justo, que satisfaça na forma e transmita com apuro a ideia ou sentimento desejado. Não importa quantas horas se passe ruminando: um único verso acurado salva o dia e alegra o espírito, repetindo-se em mente ao infinito após a sessão de trabalho. Já a prosa não faz senão evocar um caminhão de problemas após a brevíssima e chocha sensação de dever cumprido. Incomparável…
“Bravura é pelejar perdida guerra!”
Acabo de dar vida a um personagem que dá um nó no raciocínio e contorna um pessimismo terrível bradando: “Bravura é pelejar perdida guerra!”. Cá de fora do poema, diz-me a mente que “burrice” também encaixa perfeitamente na métrica e no ritmo. É verdade, mente, você tem razão… Mas é curioso como o raciocínio amiúde contrapõe-se à honra, exigindo esta uma conduta irracional. “Le cœur a ses raisons que la raison ne connaît point” — assinala lucidamente Pascal. E há vezes em que ser racional é, também, ser medíocre.