O cérebro humano sempre acaba humilhado

O cérebro humano sempre acaba humilhado quando cede à tentação irresistível de ordenar o irracional. Seria muito mais fácil se o aceitasse em suas ilimitadas manifestações, e assumisse para si mesmo os próprios limites. Não se pode concatenar o espontâneo, o inédito, o excepcional sem que se corra um risco imenso de cair no ridículo. O erro é fruto da presunção. Se a razão exige respostas, carece de lógica, deve contentar-se o mais das vezes com o processo mesmo de análise, com o simples reduzir os possíveis enganos através da observação atenta, e evitar, quanto possível, o julgamento precipitado. O irracional existe, impõe-se, e não dá a mínima para suas considerações.

A psicologia acabou se afundando…

Embora possam estar relacionadas, são coisas completamente diferentes a antipatia pela socialização e a inabilidade social. Introversão não implica, necessariamente, timidez ou inibição. Neste erro caem muitos psicólogos, e os que não caem, erram julgando a primeira um transtorno de personalidade — logo, algo que deve ser corrigido. A psicologia acabou se afundando por não ter definido, desde o princípio, o escopo de sua atuação. Entregou-se aos encantos da novidade e invadiu outros terrenos — terrenos cuja complexidade extrapola-lhe os meios de análise. Procedeu assim classificando padrões comportamentais como se fossem sempre resultado de uma fórmula estúpida, como se o homem não tivesse capacidade de julgar e escolher. Pior do que isso: sem que percebesse, estabeleceu uma escala de valores supostamente universal a ser utilizada como referência para aquilo que é ou não é normal. Destarte, erigiu um modelo humano desprovido de individualidade — um modelo, portanto, extremamente superficial.

A psiquiatria moderna, invadindo o terreno da filosofia…

A psiquiatria moderna, invadindo o terreno da filosofia, já é uma espécie de doutrina em que eminentíssimos Simões Bacamartes vão a passos largos em direção ao fim que teve o original. Há um modelo de normalidade, e este modelo é o do bobo alegre. Quem nele não se enquadre está indiscutivelmente doente e deve procurar ajuda profissional. Há juízos sobre a vida, sobre o meio, sobre os outros, há condutas deliberadas que só brotam numa mente não saudável. Todas elas, é claro, devem ser tratadas. Um Sêneca, um Schopenhauer, fatalmente sofre de um transtorno. Assim como todos os santos, todos os monges, eremitas de qualquer espécie, poetas, sonhadores, aventureiros e muitos outros. Um Fernando Pessoa, então, é um louco varrido, um doido de amarrar em pé de mesa. E para todos estes, a iluminadíssima psiquiatria moderna já atribuiu uma doença mental. Tudo isso seria engraçado, se não estivéssemos numa época onde as liberdades são gradativamente sufocadas e os indivíduos, cada vez mais, são forçados a seguir uma cartilha comportamental. Não falta muito para que o Estado, calcado na Ciência, proponha-se a corrigir os transtornados, justificando-se pelo Marketing. E então internados os mentalmente enfermos, os nocivos para o bem comum. É possível imaginar perfeitamente o Ministério da Saúde que Orwell não criou operado pelos poderosíssimos sociopatas hodiernos cuja tara por controle extrapola todos os limites já registrados pela história. Que catástrofe!

A minha doença

É claro que, hora ou outra, eu acabaria encontrando a minha própria doença em livros de psicologia. Isso eu mesmo já havia previsto. Mas não foi sem surpresa que deparei-me com ela, precisa e incontestável, como a sorrir-me entusiasmada do primeiro contato formal. Analiso-lhe os sintomas e concluo: estou doente ou, antes, sou doente. O sagaz psiquiatra convence-me: padeço de uma enfermidade rara, preciso de ajuda, devo vencer-me a resistência, assumi-la e correr a um consultório. Se tiver humildade, se esforçar-me com sinceridade, posso ser convertido em um ser humano normal. Que coisa… Identifiquei-me de tal forma com a doença que forneceria, de bom grado, uma foto sorridente de mim mesmo para enriquecer com uma ilustração a enciclopédia de transtornos mentais. Mas como é feio o nome da minha doença! como é repugnante! Admito que sofro, que estou muito, muito triste, mas por que esse insulto nominal? Certamente, porque o termo de péssimo gosto ou o péssimo gosto do termo define com exatidão um animal de minha espécie ao especialista.