A psiquiatria moderna, invadindo o terreno da filosofia…

A psiquiatria moderna, invadindo o terreno da filosofia, já é uma espécie de doutrina em que eminentíssimos Simões Bacamartes vão a passos largos em direção ao fim que teve o original. Há um modelo de normalidade, e este modelo é o do bobo alegre. Quem nele não se enquadre está indiscutivelmente doente e deve procurar ajuda profissional. Há juízos sobre a vida, sobre o meio, sobre os outros, há condutas deliberadas que só brotam numa mente não saudável. Todas elas, é claro, devem ser tratadas. Um Sêneca, um Schopenhauer, fatalmente sofre de um transtorno. Assim como todos os santos, todos os monges, eremitas de qualquer espécie, poetas, sonhadores, aventureiros e muitos outros. Um Fernando Pessoa, então, é um louco varrido, um doido de amarrar em pé de mesa. E para todos estes, a iluminadíssima psiquiatria moderna já atribuiu uma doença mental. Tudo isso seria engraçado, se não estivéssemos numa época onde as liberdades são gradativamente sufocadas e os indivíduos, cada vez mais, são forçados a seguir uma cartilha comportamental. Não falta muito para que o Estado, calcado na Ciência, proponha-se a corrigir os transtornados, justificando-se pelo Marketing. E então internados os mentalmente enfermos, os nocivos para o bem comum. É possível imaginar perfeitamente o Ministério da Saúde que Orwell não criou operado pelos poderosíssimos sociopatas hodiernos cuja tara por controle extrapola todos os limites já registrados pela história. Que catástrofe!

A minha doença

É claro que, hora ou outra, eu acabaria encontrando a minha própria doença em livros de psicologia. Isso eu mesmo já havia previsto. Mas não foi sem surpresa que deparei-me com ela, precisa e incontestável, como a sorrir-me entusiasmada do primeiro contato formal. Analiso-lhe os sintomas e concluo: estou doente ou, antes, sou doente. O sagaz psiquiatra convence-me: padeço de uma enfermidade rara, preciso de ajuda, devo vencer-me a resistência, assumi-la e correr a um consultório. Se tiver humildade, se esforçar-me com sinceridade, posso ser convertido em um ser humano normal. Que coisa… Identifiquei-me de tal forma com a doença que forneceria, de bom grado, uma foto sorridente de mim mesmo para enriquecer com uma ilustração a enciclopédia de transtornos mentais. Mas como é feio o nome da minha doença! como é repugnante! Admito que sofro, que estou muito, muito triste, mas por que esse insulto nominal? Certamente, porque o termo de péssimo gosto ou o péssimo gosto do termo define com exatidão um animal de minha espécie ao especialista.

Embora seja útil a tentativa de atribuir sentido…

Embora seja útil a tentativa de atribuir sentido às manifestações mentais inconscientes, é preciso que se estabeleça uma escala de importância para aquilo que se vai descobrindo; do contrário, a mente atira o analista em terrível confusão. É simples erro achar que a mente não revela senão aquilo que ocupa o posto de maior relevância momentânea ou atemporal, que tudo quanto evoca possui um profundo e importantíssimo sentido: para constatá-lo, basta um pouco de atenção e bom senso. Se às vezes evoca imagens de significado indiscutível, noutras parece tão somente brincar. Pois que brinque…

A criação de amigos imaginários

Como sabiamente recomendou Fernando Pessoa, a criação de amigos imaginários, o exercício de conversações mentais que jamais seriam efetivadas em vida, a realização do impossível pela mente, tudo isso, para além dos benefícios provenientes das novidades infinitas, acarreta contribuições inestimáveis para a organização do raciocínio. É uma prática que testa limites, expõe contrapontos, alastra horizontes, além de suprir a carência oriunda da limitação da experiência. A mente sai fortalecida porque exercitou-se e conheceu mais, o pensamento toma contornos mais sólidos, e o hábito, com o tempo, converte-se numa salutar, prazerosa e insubstituível necessidade psíquica e existencial.