Talvez não haja esforço que possibilite a nós, modernos, uma real compreensão do homem medieval. Todo ele é-nos intrincado, mas parece o seu traço mais incompreensível ser aquele que Huizinga assim descreve:
No espírito medieval, todos os sentimentos mais puros e elevados foram absorvidos pela religião, enquanto os impulsos sensuais e naturais, deliberadamente rejeitados, tiveram de se rebaixar ao nível de uma mundanidade pecaminosa. Na consciência medieval coexistem, por assim dizer, duas concepções de vida: a concepção devota, ascética, que se apropria de todos os sentimentos morais, e a concepção mundana, toda ela deixada ao diabo, que se vinga terrivelmente. Se uma das duas predomina por completo, então surge o santo ou o pecador irrefreado; mas em geral elas se mantêm num equilíbrio instável, com oscilações da balança. Veem-se pessoas apaixonadas, cujos pecados em flor por vezes fazem sua devoção transbordar e explodir ainda mais violentamente.
É uma tensão muito mais forte, que embora extreme o vício, torna mais autêntica a virtude que se lhe contrapõe. É um comportamento tão apaixonado, e sobretudo tão sincero, que nos obriga a admitir que o homem moderno, comparado ao medieval, quiçá se destaque pela “moderação”, mas com certeza por um assombroso cinismo.