Oculto o sol na turba e fria tarde…

Oculto o sol na turba e fria tarde,
Um crematório cospe um ser na rua;
O olhar diz tudo: a mente se contorce
E o peito quase estoura de amargura.
O aspecto denuncia o nulo sono,
O traje a infeliz solenidade,
O passo é lento, o torso oprime as pernas,
Fremente a mão direita, concentrada
A não deixar cair a pequenina
E delicada urna de madeira
Em que descansam lúridos resíduos
Da combustão completa da matéria
Que de si mesmo foi progenitora.
Vacila o movimento, as pernas fracas
Amparo pedem, sofrem de vertigem,
O tronco escora-se em qualquer parede,
Socorro os olhos buscam, quando encontram
Em frente duma praça, a poucos metros,
Vazio, um banco solitário, cinza,
Requisitando a preia da desgraça.

Sentando, o alívio. Pois suspira. As lágrimas
Querem sair, forçando os olhos fecham,
É público o local, respira fundo
E mira o céu nublado: pede forças.
A mão comprime o banco de concreto,
Os pés o chão esmagam, querem saia
Este ímpeto feroz que impele o grito,
Suspira novamente, engole o choro,
Ajeita-se no banco, baixa a vista,
Observa-se a dez metros vida doutra.
Não vai chorar! por honra! Quando ocorre
Que a mente infame, no auge do tormento
Repara quantos dentes exibidos.
Revolto, o raciocínio não compreende:
Sorrindo, dentro os porcos dum açougue?
Galinhas numa granja sanguinária?
Pois, sim! Sorrindo vivem, satisfeitos
Só vivem, não se espantam, não maldizem
A vida: aceitam, ou a não compreendem…
Que diferença faz? Estão sorrindo…

Na mão se encontra o pai após três meses
Agonizando em leito hospitalar;
Habita agora um artefato humilde
A vida, os sonhos, a completa essência
Do ser que, mudo, reduzido a cinzas
Morreu sem proferir a despedida,
Morreu em ilusão da própria cura:
Agora, em pó, privado da esperança,
Do verbo: morto! E morta a própria crença!
Fé grande que expirou incinerada!
Piedade, céus! Inexpressivos olhos
Fitavam a singela caixa fúnebre
Buscando qualquer mais que a morte fria,
Qualquer além, qualquer eternidade…
Pois o destino quis que a mão, enquanto
Emocionada a urna acariciava,
Quis que encontrasse, em base, um adesivo
Em cuja face, a tinta, escrito o nome
Do crematório, não do pai, e o preço
Do recipiente manufaturado…

Ultraje! A mente grita, o lábio aperta,
O corpo fatigado não partilha
Da agitação, só roga alguma trégua…
Arrancando o papel desrespeitoso
Enxerga o raciocínio claramente
Gravado na madeira o menosprezo
Qu’experimenta a sonhadora raça,
Infere diante do sarcasmo oculto:
Não há eternidade, não há nada!
Doença e morte! O resto é fantasia,
É a confissão da máxima impotência
A defrontar o bárbaro destino
Que anula o ser à derradeira célula!
Doença e morte: o meu destino! A vida
Conduz somente à dor e ao extermínio
E quando o corpo seco, lacerado,
Não pode articular qualquer resposta,
Não pode enobrecer-lhe a existência,
O mundo expõe: agora o ser é nada;
E, indiferente, avilta-lhe a memória.

Distingue o que há na urna: pó e vento,
E escuta internamente o Pai do Mundo
Em própria voz, zombando, escarnecendo
Do afeto destinado ao simples pote:
Um pote, um artefato de madeira
Confeccionado junto a outros mil,
O somatório reles de mão de obra
E lucro ao custo da matéria-prima,
Um pote ignóbil! Vê, sujeito estúpido:
O pote alberga adusto, morto, um pó
Que já foi ser humano, mas não é,
A vida que houve ali, já vanesceu.
Piegas! Infantil! Já foi! Resíduo
Da combustão é tudo o que sobrou:
Destroços batizados de Amanhã!…
Enforca a voz interna, rancoroso,
Levanta-se, mirando a pífia urna,
Atira-a no jardim detrás do banco
— A tampa cede, o pó derrama em solo —
E o passo enceta firme rumo à morte…

(Este poema está disponível em Versos)

Mas donde? pr’onde?…

Mas donde? pr’onde? E logo o palavrório
Que não causa senão divertimento,
E faz contaminar o pensamento
Vestindo de importante o irrisório.

Que peça não comove o auditório,
Paixão que não servira de alimento
Pr’um único ato atroz, sanguinolento,
Tormento que excitou jamais velório…

Preocupação inútil, simulada,
Parece que aventar profundidade,
E adorna o verbo vão de seriedade…

O frívolo discurso envolto em nada
Posterga o que arrepia e quer porquê.
O que lateja e rasga é: para quê?

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Corrupta configuração, decerto…

Corrupta configuração, decerto…
Enseada a toda espécie de assassino,
Que assusta quando, à luz de indício incerto,
Parece, em brando olhar, sorrir ao tino…

E o juízo a um pé de ter-se categórico
Lhe vê que a fixação nos quintos míngua,
Em objeção enxerga um não pictórico,
Absurdo a replicar na própria língua…

Vai, pois, Mistério, exibe-te a virtude,
Faz colapsar o raciocínio fraco,
Faz o que bem quiseres, vai, ilude…

Torna a asserção humana vão pitaco,
Causa total na empáfia um desmantelo,
Mostra e rebuça, a ti subjuga o belo…

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Do artista o fado é voz dar ao complexo…

Do artista o fado é voz dar ao complexo,
Banhar-se imerso em contradita forte,
Certeza ter, então, perder o norte,
Quedar, por fim, inválido e perplexo.

Chorar mirando o juízo desconexo,
Ansiar por luz e não achar suporte,
Curvar-se ao mesmo tempo à vida e à morte,
E divisar no ambíguo o seu reflexo.

Oh, dura guerra interna e verbo pobre!
O mesmo enigma que à verdade encobre,
Perturba o espírito, à razão retalha,

Arroja a mente em campo de batalha
Sem armas, em fraquíssima armadura,
Trajada do indumento da loucura!

(Este poema está disponível em Versos)

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