Unidade única

O germe vem à anímica estrutura
Do bem, mostrando bem no dito infando:
O verme quando a presunção tritura
Tritura a presunção purificando!

Há noite e dia, a noite vem sempre antes
Do dia, noite e dia, nunca o inverso:
A treva expulsam raios fascinantes
Tal como um verso segue o outro verso!

A flor não morre em chão ao decompor-se;
Lhe não escorre o ser, somente assume
Melhor feitio: desmanchando a flor se
Conduz ao céu em forma de perfume!

O pão beato curva e sega a fome
E à plantação rega a beata chuva,
O leite existe pra que o homem tome
E o vento quando sopra ao barco adjuva!

O universo de tudo sempre cuida
De dar sentido, unir, essa unidade
Matizes vários tem, conquanto fluida
E sempre idêntica em finalidade!

Ó porco amigo, sigas engordando!
Pois quanto existe, porco, o alimento
Existe a dar-te! Neste mundo brando
Ir-te-ás em infinito alargamento!
Ó porco, sigas sempre acreditando
Que o mundo existe ao teu contentamento!

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Silêncio longo rompe, e na câmara escura…

Silêncio longo rompe, e na câmara escura
Sapatos, calmamente, em direção incerta
Tropeiam percorrendo a lúgubre clausura.

Na treva um clique. Súbito, um clarão desperta
Paredes cor de sangue, em febre, ardendo forte,
Qual exprimindo, iradas, agressivo alerta.

Roncando acorda um forno, e treme-lhe o suporte;
Sobre a bancada em pedra, imóveis a brilhar
Como em expectativa as lâminas da morte.

Meticulosas mãos, em arte singular,
Fazem o aço ranger: o agudo retinente
Ecoa e anuncia: é noite de rasgar!

Envolto o teso membro em luva transparente,
Um pano umedecer faz em líquido ignoto;
De amônia escapa odor, contaminando o ambiente.

Nas mãos a prava faca, o pano, em mente o voto;
O olhar feroz atira ao âmago, qual seta,
Da câmara em que sobre um leito de aço, imoto,

Atado, um ser descansa em dormência completa:
Mordaça em couro sobre o lábio ressequido,
E o torso alvo e nu marcado em tinta preta.

A ver se ativa o mais fundamental sentido
E torna interessante a mão à noite cava
Encosta no nariz o pano umedecido.

O olhar desperta em três segundos. O urro trava
E perde-se na carne acesa, em alvoroço,
Que presa em firmes nós é convertida escrava!

Atado em mãos e pés e cintura e pescoço!
Imóvel! Preso! E o rubro aterrador invade
A mente pela vista, enquanto treme o osso!

Ao ventre nu perpassa a rígida acuidade
Como esboçando, lenta, em caprichosos traços,
Terrível e escarlate a fronte da maldade!

Deitada a superfície, inúmeros compassos
Esfolam de contínuo, e o pobre ventre fica
Em carne viva! E a mão da pele extrai pedaços…

Terror de um lado e doutro o lábio vil estica
O riso do carrasco ante o ser condenado
A abandonar gemendo a terra em males rica!

Aguarda a vez, ansioso, um frasco preto ao lado
Das lâminas. Puxado, exala alegre: é química!
Uma só gota em carne e novamente o brado

Selvagem trava! Como em assombrosa mímica,
O abrir dos olhos diz que a carne é causticada,
E queima além da derme a estrutura anímica!

Então de uma só vez despeja uma enxurrada
De gotas! E o terror é ver que a mente escuta,
De súbito, romper sonora a gargalhada!

A voz diz: “Dói?”, e ri! Perdeu a fé, a luta;
Feneceu o clamor travado na garganta
Do torturado. A mão quer mais! Pois que executa

Um ágil movimento e saca um que abrilhanta
Alçado, um canivete. E a ponta, como relha
Insere em topo do anelar. Então levanta

A unha aos poucos; força entrada. E vê de esguelha
O sofredor da junta ungueal a resistência
Romper, e o dedo estila a lágrima vermelha…

Já quase na falange, e já rota a aderência
Entre unha e carne, a folha, em movimento rude,
Arranca e cospe a unha ao alto com violência!

Quer mais a mão! Mais sangue! Avança a inquietude:
Um só não dá! É pouco, é nada! E, pois, repete
Por vezes dezenove idêntica atitude!

No chão a queratina, o forte canivete
Insatisfeito para e pensa: “Quero mais!”
Reflete junto a mente hedionda que o submete.

Implora o outro a Deus, contudo os infernais
Neurônios, trabalhando, avistam nova luz:
Cutelo, agora! Um dedo é posto, entre os demais,

À parte, a mão pressiona a outra então conduz
O cabo ao céu, e chora o dedo, sob pressão
Contra uma tábua. No alto o mau cutelo luz:

Decepa! E urra a mente em alucinação!
O sangue jorra! E o barulhento forno incita
Roncando, o dono a ver-lhe a grande agitação!

Pela segunda vez a voz perversa grita:
“Escolhe: faca ou forno”; e arranca, num instante,
A peça negra, em couro, e livra a boca aflita

Que estoura, insana, em desespero alucinante
E quer articular, mas rompe, explode a voz
Em uivo! berro! O convulsivo, agonizante

Mortal quer suplicar e o singulto feroz
Impede! E grita o olhar, a mente! A alma reclama
Misericórdia emocionada ao frio algoz!

A mãe idosa! O filho! A morte não! A cama
Sacode, quando o ser, queimando em febre intensa,
Arfante: “Por favor, senhor!” — implora, exclama:

“Por favor! Por favor!” — e lembra em dor imensa
Da mãe, do filho! E diz em desolado pranto:
“Aceito tudo a reverter essa sentença!”

E pulsa a culpa! E dói só de pensar em quanto
Hão de sofrer, penar privados do carinho!…
E o monstro assiste a cena em absoluto espanto…

Então, como em milagre a mão do ser daninho
Desfalecida, apática, a arma branca larga,
E escolhe enveredar por superior caminho.

Atira-lhe a consciência esmagadora carga;
Barbárie acumulada em uma vida inteira…
E o vil torturador verte da boca amarga:

“És superior a mim. Miro-te em verdadeira
Misericórdia. Sou terrível, monstruoso.
Nada fizeste a mim. Faço por brincadeira…

“Divirto-me da dor humana, sinto gozo
Quando faço sofrer. Mas hoje, aqui, provaste
Que és mui maior que eu. És nobre, virtuoso.

“Pois nesta sala a mim exibiste o contraste
Moral entre o poder e a sujeição. Maldito
Sou eu e minha vil vontade. Tu criaste

“O que eu sou incapaz: afeto. Necessito
De subjugar a ver em mim qualquer valor…
E tu extrapolaste a ti chorando, admito…”

Assim foi libertado o egrégio sofredor
Que carregou pra sempre as marcas da maldade;
Saiu, contudo, agradecido ao malfeitor…

Mil mortes, um perdão! Atroz perversidade
Que cede uma só vez, dizer-se acometida
— Que seja uma só vez… — da mais pura bondade

Habilitada está! A mais frouxa investida
A relevar a dor de outrem — uma só! — Mil,
Mil vezes torna o ser melhor do que essa Vida

Que dessa tal Misericórdia nunca ouviu!

(este poema está disponível em Versos)

O implante capilar tingido e lindo…

O implante capilar tingido e lindo,
A pele a aparentar ser espontânea,
Mirar o espelho: alegria instantânea!
O lábio cheio, a visão distinguindo…

Oh, como é bom poder viver sorrindo!
Adeus, odiosa banha subcutânea!
Adeus, velhice sempre extemporânea!
Por fim a má tristeza é império findo!

Saúdo a ti, ó grande tecnicismo!
Saúdo a ti, ó cirurgia clínica!
Tornais belíssima a matéria cínica,

Ornais mui bem o pérfido organismo,
Embelezais o gênio indecoroso,
O que fazeis, em suma, é primoroso!

(Esse poema está disponível em Versos)

Prazer que é despertar na expectativa…

Prazer que é despertar na expectativa,
Estimulado a cada nova aurora!
Abrir os olhos e dizer: “Agora
É fazer o que me enobrece e aviva!”

E já de pé, disposto e mente ativa,
A alma voltar àquilo que vigora,
Àquilo que da vida faz altiva,
O espírito enche e a prática aprimora!

O livre-arbítrio, dádiva bendita,
Permite converter o tempo forte
Em cúmplice! E o que, pelo afinco exita,

Provando-se maior que a própria sorte,
Fulgindo mais que a luz da própria estrela,
Acabará dizendo: a vida é bela!

(Este poema está disponível em Versos)