A obsessão da técnica artística

A obsessão da técnica artística

Tomou-me a obsessão da técnica artística. O que prepondera na técnica? até que ponto ela importa? De súbito, vem-me à mente uma das cenas mais perfeitas que já li. Puxo da prateleira minha versão de Anna Karênina, que ali repousava, imóvel, desde 2017. Certamente, já não sou mais o mesmo: em cada um desses anos, o que me ocorreu foi uma evolução drástica em todos os quesitos. Mas me recordo bem da fortíssima impressão que tive da cena. Vamos ver. Levo poucos minutos para encontrá-la e, enquanto folheio a obra, reflito novamente na técnica: há uma dimensão estilística impassível de tradução; as páginas que tenho em mãos são uma tentativa de replicar em português o original russo. Localizando a cena, meu primeiro impulso é inspecionar-lhe a extensão: exatamente dois capítulos, que irrompem após Vronski despedir-se de Anna e, “inquieto”, estar “a tal ponto repleno do sentimento por Anna, que sequer cogitou que horas eram”. Lembra-se que disputaria uma corrida, e percebe-se atrasado. Então Tolstói passa a narrar Vronski, neste estado de tensão psicológica, a ser paulatinamente tomado da atmosfera de competição. O hipódromo lotado, a grande expectativa, tudo contribui para excitá-lo. Veste-se “sem pressa”, cuidando não perder o domínio de si. Quando chega ao local das provas, depara-se com um “mar de carruagens”, pedestres, soldados, e “palanques fervendo de gente”. Reconhece-lhe os adversários e, também, Anna: desta não se aproxima, a evitar a perda da concentração. O ambiente é pintado impecavelmente, mas o que mais impressiona é que a grande tensão psicológica que iniciou o capítulo só faz crescer: cada frase atiça, chacoalha os nervos de Vronski, que encontra a própria égua, também, agitadíssima, “a tremer como se tivesse febre”, com olhos “cheios de fogo”. Tudo isso no capítulo que precede a corrida ou, em outras palavras, no capítulo que descreve engenhosamente o aspecto emocional e psicológico da corrida. Ressoa uma voz ordenando a montada, e os dezessete competidores seguem, nervosos, ao local de inicio da prova, descrita em detalhes por Tolstói: nove obstáculos perigosos em pista elíptica de quatro verstas. Ao grito da partida, os animais põem-se em disparada. Vronski, que se sabe alvo de todos os olhares, larga atrás de alguns cavalos e luta contra a agitação de sua égua. Após o primeiro obstáculo, “domina totalmente a montaria” e ultrapassa velozmente os adversários, ficando atrás apenas de seu principal competidor. Todos estes movimentos são narrados magnificamente: a aceleração, o tropeio dos cavalos, os saltos por cima dos obstáculos e, principalmente, o psicológico de Vronski, com o brio irritado pela segunda colocação. Não leva muito para que ultrapasse o seu adversário e dispare na dianteira. Eleva-se sobre o obstáculo mais perigoso mantendo o compasso, ritmado, sob os gritos de “Bravo!”. A quatrocentos metros do fim da prova, sabendo já tê-la vencido, Vronski maneja as rédeas a fim de chegar bem à frente dos demais. Aumenta a tal ponto a velocidade da montaria que voa sob o último obstáculo e, não conseguindo acompanhar a velocidade da égua, quebra-lhe a espinha deixando-se cair sobre a sela. Perde a corrida; médicos deliberam abater o animal com um tiro. O evento, para Vronski, fica-lhe “por muito tempo como a mais penosa e torturante recordação da sua vida”. Termino o capítulo com uma impressão tão forte, tão viva como a de minha primeira leitura. A tradução não se permite ornatos sintáticos: e não fazem falta nenhuma! A cena é encadeada com maestria: o arco de ação, desde o gatilho inicial ao desenlace da cena, encerra uma tragédia particular, que pode ser lida separadamente da obra sem o menor problema. A narração direta, objetiva, estimula o psicológico a cada parágrafo, auxiliada por adjetivos e elementos pictóricos carregados de apelo emocional. Há técnica, isso é evidente: a construção foi diligentemente planejada, estimula com potência e progressivamente o sentimento no leitor. Mas tento pensar em que, exatamente, essa cena se destaca de todas as outras. Onde está o brilho? por que configura o exemplo da grande arte? como é possível que, mesmo numa tradução, tenha um efeito tão forte? E inclino-me a pensar que o grande, na arte, reside naquilo que é escrito em linguagem universal…