Auto de fé, de Elias Canetti

A impressão que ficamos quando, logo no início deste romance, deparamo-nos com uma cena espetacular em que o protagonista, o professor Peter Kien, é abordado na rua enquanto pensa, ou melhor, é insistentemente demandado por um estranho, até que este, ignorado, toma a liberdade para empurrá-lo, porque julga-se no direito de reclamar atenção para si, a impressão que ficamos é de estarmos diante de um espírito superior. Afinal, quantos seriam capazes de conceber uma cena como esta? imaginar que pode haver um ser humano que pensa enquanto está em silêncio, e que o próprio silêncio não é, para alguns, a expectativa da comunicação? Assim, já ficamos tentados a reconhecer Canetti como legítimo dignatário da Grande Igreja. E criamos, também, uma exagerada expectativa quanto ao professor Kien. Daí que o romance converte-se numa sequência torturante, num aniquilamento progressivo e impiedoso, até que não reste o menor resquício daquela personalidade que a princípio nos impressionou. É um grande romance, não há dúvida, e há pontos em que a sequência de absurdos curiosamente confere realidade aos personagens, cujas obsessões parecem atira-los todos num estado de semiconsciência, cujas tensões psicológicas parecem colocá-los sempre a um fio de um colapso. Que mais se pode dizer? A técnica discursiva, determinado momento, cansa; mas não é falsa e é eficaz: a prova disso é que sentimo-nos tentados a dar um tiro em cada um dos personagens, tal como frequentemente ocorre com seres humanos reais. A obra, contudo, cairia melhor no teatro… E resta-nos somente reconhecer no autor a qualidade que tanta falta faz aos seus personagens: a lucidez.