Alguém a dizer o óbvio!

Diz Luciana Stegagno-Picchio:

A crítica, desde a de gosto psicanalítico até a de intenção sociológica, ocupou-se e preocupou-se bastante com a cor da pele de Machado de Assis, a ela atribuindo psicossomaticamente todos os males que afligi­ram o homem, da gagueira à epilepsia: problema que aparentemente não deveria apresentar nenhum interesse num país de integração racial quase total, programaticamente alheio a todo tipo de racismo e mesmo incapaz de distinções excessivamente sutis no assunto (…)

Oh, Deus! Incrível! Alguém a dizer o ostensivamente manifesto, o expressamente validado na pele, na mente, na língua e na cara do brasileiro! Claro, claro, são linhas de uma estrangeira… Por aqui, a necessidade é, ainda e sempre, a de imitar os americanos, especialmente nos defeitos. Mas há estrangeiros, e estrangeiros que registram a verdade! Como é bom havê-los! E, havendo-os, pode-se sonhar com alguma redenção….

Embora, como está dito, a boa literatura…

Embora, como está dito, a boa literatura seja sempre mais ou menos autobiográfica, é inútil buscar obsessivamente em seus detalhes o paralelo com a experiência do autor. O mais das vezes, as experiências servem somente de gatilhos, de motivos, de ilustrações para algo que as extrapola na obra. Não é pouco, e é mais que suficiente. O resto é a exploração e o aprofundamento das possibilidades que permite a literatura, mas que por vezes a vida não permitiu.

O efeito mais evidente da politização da cultura…

O efeito mais evidente da politização da cultura, cuja principal manifestação é a arte, é a inibição da criatividade. Em literatura, o resultado são obras que podem tudo, menos surpreender o leitor. E aí se coloca o problema: embora uma obra, para que seja boa, não necessariamente tenha de se destacar pelo caráter surpreendente, a previsibilidade, quando absoluta, é simplesmente intolerável. Uma obra cujo desenrolar já está previamente determinado por uma ideologia, seja ela qual for, é uma obra morta, e mortos estão de antemão os artistas que voluntariamente se aprisionam nesta lamentável cela.

Algum filósofo notou ser a obra filosófica…

Algum filósofo notou ser a obra filosófica a repercussão de um lampejo único e decisivo, a partir do qual facilmente se delimita um antes e um depois. Tal lampejo é decerto observável; mas o curioso é que ele, ocorrendo de praxe antes dos trinta, aponta somente o caminho, o incontornável caminho, mas não assegura para onde este conduzirá. Pelos trinta, não há como negar, faz-se filosofia mais ou menos como se faz literatura: registrando e discorrendo sobre impressões. Estas, ainda que verdadeiras, ainda que determinantes, parecem pedir tempo para cristalizar. Quer dizer: a admirável, a impressionante segurança com que se expressam alguns filósofos de cabeça branca quase nunca é igualada por filósofos mais jovens, o que parece sugerir que o grande filósofo descobre-se cedo, mas só se realiza após um longo tempo de maturação.