Ser culto envolve entender que o mundo é velho, vasto e plural

Ser culto envolve entender que o mundo é velho, vasto e plural. Envolve enxergar que a civilização não começou no último século, que há países e não um só país; há religiões, literaturas, povos, idiomas, culturas, morais, ídolos, tradições… Há assimilações múltiplas da realidade, hábitos contrastantes e amiúde opostos. Há climas, geografias, histórias… Em suma: ser culto envolve entender que o mundo excede o próprio umbigo — algo raro de se ver…

Tudo quanto é vivo morre…

Compreenderam os budistas a mecânica deste mundo, onde tudo quanto é vivo morre, ainda que lentamente, ainda que disfarçadamente mediante um ciclo inevitável. Admira, pois, que seja tão difícil defrontar a morte como episódio natural e necessário. Colocar pedras sobre o passado: eis a rara virtude, também chamada maturidade, que não é senão a capacidade de aceitação do presente. Tudo está sempre em movimento, todo estado é necessariamente transitório, morrerá o que hoje vive e o que foi não é…

O português e suas infinitas anomalias gramaticais

O português parece-me, entre todas as línguas que conheço, a mais rica em anomalias gramaticais. Talvez por isso esteja entre as mais difíceis de se escrever bem. No português, há territórios imperscrutáveis a estrangeiros, territórios em que mesmo os nativos acham-se em desorientação. Que dizer, por exemplo, de nossos verbos abundantes, isto é, os de particípio duplo? Provam eles que o que se diz na rua sempre acaba pautando a gramática — ainda que a lógica esperneie. E que mais? Provam eles que a gramática portuguesa é frequentemente ingrata, porque o que se diz na rua hoje só irá para a gramática de amanhã. Os exemplos são infinitos. Em Portugal, por exemplo, já está mais do que consagrado o uso das variantes reflexivas do pronome se (si, consigo) referindo-se ao interlocutor de uma conversa. No Brasil, há um verdadeiro samba entre pronomes e verbos na função de 2ª pessoa do singular: a depender da região, diz-se “tu” a quem se diz “vai” no presente; utiliza-se o oblíquo “te” referindo-se àquele que se chama de “você”; conjuga-se, também, o imperativo na 2ª pessoa quando os outros modos verbais são conjugados na 3ª; entre inúmeras outras anomalias dignas de nota. Pois bem! Como estabelecer uma linha entre o certo e o errado? como se orientar? Sabemos que o uso, em última instância, dita a correção. Mas o artista que medir-se unicamente pelas ruas fará arte de segunda categoria. Se aferra-se à rigidez da gramática parecerá engessado, esquisito e artificial; se abraça o falar do povo soará inculto como ele e construirá linhas estética e eufonicamente horrorosas. Mas aí está o segredo: para o artista não há certo ou errado; há ferramentas, meios de expressão. O grande artista absorve tudo e tudo subjuga à sua arte. Vale-se da gramática quando lhe é conveniente, fazendo de idêntica forma com a linguagem coloquial — ele paira acima de ambas, e sua arte dá abrigo à linguagem em suas mais diversas manifestações.