Como é possível?

“O homem nunca se assume pouco inteligente” — assim disse e adiciono: foi-me a maior humilhação descobrir-me, já adulto, um analfabeto. Senti-me absolutamente humilhado ao perceber-me incapaz de ler em meu próprio idioma e, portanto, encontrei-me exatamente um analfabeto. Intolerável! Um único recurso de estilo — estes presentes em cada frase de um grande escritor — privava-me do sentido de um período — um verdadeiro terror julgar inútil o próprio dicionário! — Mas por que digo isso? Percebendo-me apedeuto, passei a estudar gramáticas com fervor quase religioso. Hoje, a surpresa: estes livros maçantes têm-me parecido agradáveis. Como é possível?

O homem assume-se injusto, mas nunca pouco inteligente

O homem assume-se injusto, grosseiro e mau-caráter, mas nunca pouco inteligente. Essa é-lhe a única humilhação intolerável. Mesmo o mais rasteiro dos ignorantes — e este principalmente — acha-se inteligente ou, no mínimo, esperto. Faça-se o mundo de auditório e solicite-se que levantem a mão apenas as bestas: nem uma única mão se levantará. O homem — ele e sua vaidade — não admite essa possibilidade. Do contrário, seria nivelar-se conscientemente a um animal — algo inadmissível, e impossível quando lhe falta justamente a consciência.

Desaparece sempre o encanto quando se conhece alguém em profundidade

Desaparece sempre o encanto quando se conhece alguém em profundidade. Por isso as relações não perduram agradáveis senão quando há distância. Aquele que admira há de ter sempre em mente a fragilidade das admirações. Mata-se qualquer ídolo com uma investigação diligente, com um excesso de curiosidade que resulta sempre na violação mental da idealização. Do contato com o próximo tira-se proveito somente quando travado em doses homeopáticas.

Camões é Os Lusíadas

Diz Pessoa:

Camões é Os Lusíadas. O lírico, em que os inferiores focam a admiração que os denota inferiores, era, como em outros épicos de sensibilidade também notável, apenas a excedência inorgânica do épico.

E, noutra ocasião:

Chora Camões a perda da alma sua gentil; e afinal quem chora é Petrarca. Se Camões tivesse tido a emoção sinceramente sua, teria encontrado uma forma nova, palavras novas — tudo menos o soneto e o verso de dez sílabas. Mas não: usou o soneto em decassílabos como usaria luto na vida.

Que dizer? Primeiramente, é diminuir Camões classificá-lo como poeta épico: Camões era poeta. Como Pessoa, poeta de manifestações múltiplas, grande poeta. Em seguida, o julgamento estético. Resumir a poesia à forma é tão rasteiro quanto julgar um romance pelo número de páginas. Há sonetos em que se encontra tudo, exceto o Petrarca. O que convém é perguntar: que faz o poeta em decassílabos? é possível enxergá-lo em seus sonetos? Notamos o óbvio: quando chora Camões, Camões é que está a chorar. E, fosse-me o vocabulário, adicionaria que o choro é mais belo porque compartilhado, porque estabelecedor de um elo com o passado e manifestante da empatia, da humildade e do respeito. A originalidade não exige a criação de um novo formato, a sinceridade não tem obrigatoriamente de inventar o modelo da própria expressão: basta que se expresse. É notório o brilhar do poeta quando, a compor sob regras conhecidas, exprime-lhe a alma individual.