O escritor que se atrevesse a criar um personagem como Jakob Boehme…

Se um sapateiro deu luz a centenas de páginas de interpretações metafísicas… Fico pensando: o escritor que se atrevesse a criar um personagem como Jakob Boehme cairia no ridículo. É inevitável. O raciocínio não admite tamanho contraste; recusar-se-ia inevitavelmente a creditar a narrativa. Não obstante, aí está… A primeira objeção da mente seria: “Um pensador dessa estirpe se não rebaixaria nunca a um trabalho manual”. Em seguida prosseguiria, insuportável como de costume: “Tais reflexões só brotam de uma natureza cem por cento devotada ao espiritual”. A conclusão: “História estúpida e falsa”. De idêntica maneira, julgaria caso defrontasse um Boehme vivo e falante. Nisto mede-se a vastidão da miséria do pensamento objetivo.

As páginas de Jakob Boehme

É um verdadeiro choque entrar em contato com as páginas de Jakob Boehme. O primeiro impulso é perguntar: como é possível? O universo místico que lhe permeia as linhas parece impensável, inconcebível, imperceptível ao medíocre ser humano. De onde tão engenhosa imaginação? de onde essa concepção da vida que põe de joelhos a banalidade do concreto, tornando irrisório aquilo que os olhos podem ver? A noção do sentido último, a visão dos caminhos, a filosofia que implica uma conduta… todas essas manifestações de um espírito luminoso e respeitável, do qual escuso-me de fazer juízo de valor. Mas o que mais espanta, o que trava o raciocínio e atira o cérebro em perplexidade é estar ciente, a cada página, que o autor das linhas era sapateiro!

Se houver mesmo um inferno em que os hipócritas padeçam…

Se houver mesmo um inferno em que os hipócritas padeçam, que saiba a sociedade moderna onde irá aventar seu verbo e implantar suas convenções. A hipocrisia é a substância desta dita era do marketing e está arraigada no âmago de sua fundamentação. Sem hipocrisia, já não há relações sociais: é por ela que o homem moderno exibe-lhe a inteligência e a boa educação. “Era do marketing”, e hipocrisia é uma bela versão portuguesa de marketing. O mundo seria mais honesto se o bom trabalhador dissesse: “Trabalho com gestão de hipocrisia”. Mas é claro que jamais o fará. O bom trabalhador não pode sequer ser sincero com os companheiros de trabalho, com os vizinhos, com os amigos, com a família… Será que o inferno comporta tanta gente? Por outro lado, dois caminhos há para o não hipócrita moderno: (1) operar um aniquilamento total das relações sociais ou (2) viver normalmente, sob a pena de ser amplamente odiado e malquisto em todos os círculos, senão desempregado ou pedinte. Fora disso é história…

As visões do céu e do inferno de Swedenborg

Pode-se dizer várias coisas das visões do céu e do inferno de Swedenborg, exceto tratarem-se de obra de um espírito capcioso. Swedenborg possui a virtude suprema da sinceridade: não tenta iludir, esconder-se, abre-lhe a alma e busca expressar-se com a maior clareza possível — ou seja, trata-se de um espírito leal. É por isso, sobretudo, que não merece ser ironizado. Em casos como este, a ironia não passa de uma manifestação mesquinha…