O homem atinge o ápice de sua vocação humorística na revolta. O melhor palhaço é aquele que melhor simula a irritação. Seja do absurdo dos mesquinhos eventos cotidianos, seja da impotência frente ao universo, a revolta brota-lhe e expõe essencialmente o ridículo de sua condição. Todo humor surge de um contraste: a revolta suscita a gargalhada porque penosa e absolutamente inútil. Digo e enveredo pelo inevitável: há algo mais divertido que blasfêmias? Um inseto indignado ante um deus… Esperneia, brada, frita-lhe os nervos em vão. Em pleno furor, recorre à ofensa arriscando-se ao suplício eterno. Pelo prazer de julgar arranhar, num átimo, a reputação de um ser infinitamente superior, coloca-se, vulnerável, como candidato a alvo de uma ira terrível. Já disseram que toda blasfêmia é, no fundo, uma manifestação de dignidade. Talvez isso esteja certo… O risível é nem por isso de algo servir.
Preconceito inevitável
Meu preconceito por sistemas filosóficos beira o irracional. Tenho, de antemão, todos os argumentos contrários à aplicabilidade de qualquer templo erigido ao raciocínio. A lógica carece de vida, carece do real. Isolar o raciocínio, tomá-lo como entidade autônoma é ceifar-lhe a utilidade, o importante papel que exerce dentro de uma conjuntura subjetiva e complexa. Reduzir a realidade a uma esquematização lógica, subjugá-la ao racional, dotá-la de ordem, encadeamento, justificativa: estes parecem-me os erros essenciais de qualquer sistema. Só pode um sistema ser assertivo quando versa sobre si mesmo ou sobre outros sistemas, quer dizer, quando diverte-se em seu mundo particular. Enquanto analista da realidade, infelizmente, é inútil: a realidade ri de qualquer sistematização.
Melancolia…
A melancolia, tão frequente em artistas, matéria-prima de quase toda obra poética, classificada por Poe como “the most legitimate of all the poetical tones”, parece estranha à minha natureza. Caio em melancolia, se é que posso assim dizê-lo, somente quando distraio-me em questões do cotidiano. Tendo melancolia, é claro, com a tristeza entre suas manifestações. Se tomada como um desencanto geral — que não necessariamente redunda em tristeza — então sou dela íntimo como um irmão. Aflição, tortura psicológica, conflito mental interminável: estes tenho-os naturais como o dia e a noite. Não sei de onde vem essa disposição psicológica, mas pela tristeza me não sinto unido a nenhum dos grandes poetas.
É necessário a vocação da liberdade para reconhecer-se um escravo
Em primeiro plano, o mundo prático; depois, o próprio pensamento. Amarras, grilhões por todas as partes. Um campo de ação limitadíssimo e um papel a cumprir, por necessidade. Onde quer que o raciocínio direcione-lhe as lentes, lá estão as garras da conveniência. E nada disso assusta, tudo isso não constitui senão a normalidade. Uns poucos — loucos — porém despertam. Manifestam-se pela revolta. A eles, pela blasfêmia, toda a ferocidade com que um animal reage quando sente-se ameaçado. E resta a revolta, portanto, desaconselhada — para aqueles que seguem conselhos. Já aos poucos, a felicidade de saberem não ser a maioria. Como disse Fernando Savater, é necessário a vocação da liberdade para reconhecer-se um escravo.