De todas as características do intelectual moderno, tal como concebido por Paul Johnson, talvez nenhuma cause mais estranhamento — ou seria vergonha? — do que essa desmedida vaidade, que não se limita a um alto conceito que o intelectual faz de si, mas pretende uma dívida inata dos outros para consigo mesmo. Que dizer? Faltam palavras para essa pretensão, bem ilustrada pelas divertidíssimas “begging letters”. Nada anormal na aflição proveniente da ausência de meios, acaso geradora de um sentimento de injustiça, tal como experimentado por Raskólnikov. Mas este, ao menos, age; ainda que imprudentemente, busca pelo ato próprio aquilo que julga merecer. Um delírio, é verdade, mas o emprego da força denota a consciência da ineficácia do argumento, do disparate que seria a tentativa de convencer alguém de uma dívida em razão de sua superioridade. É este um descolamento tão grande da realidade que só pode mesmo remontar às questões mais elementares da criação…
A grande obra literária não sai sem que haja…
Diz Ferreira de Castro, sobre a escrita de A selva:
Era das seis e meia às oito da noite, depois de haver estendido num divã, durante alguns minutos, a fadiga trazida, como um fato de chumbo, do magazine e do jornal, que me embrenhava na Amazónia. E nem todos os dias, porque a vida tinha ainda mais exigências e outras vezes eu regressava a casa tão exausto, tão saturado de papel em branco e de papel impresso, que me faltava disposição, frescura e forças para retomar a minha pena.
Este tipo de relato, para além de desmontar a romantização da escrita, é também mais uma evidência de que a grande obra literária não sai sem que haja uma motivação descomunal, uma necessidade absoluta e irracional de escrevê-la, que suplanta pela força todos os possíveis obstáculos. Tomar consciência do cenário descrito por Ferreira de Castro diante do romance finalizado nos inclina a creditá-lo a algum milagre. Mas, decerto, nas grandes obras há menos milagre do que esta violentíssima sensação de dever.
A despeito de parecer hoje inexistente…
A despeito de parecer hoje inexistente após décadas de sistemática e veemente relativização, o senso comum permanece como a mais sólida baliza moral do homem ordinário. Não é a lei que o orienta, não é na lei que ele pensa quando age ou deixa de agir. Se não mata, se não rouba, é porque assim prescreve o senso comum, havendo ou não havendo lei. O efeito desta, aliás, graças ao estado moderno, é torná-lo sempre mais ou menos infrator. Quer dizer: se não corresponde a lei ao senso comum, não é possível enxergá-la como justa, e seu efeito não pode jamais ser educativo, como teoricamente se pretende. E disso tudo, o mais curioso é que chegará o dia em que alguém terá de notá-lo, terá de notar a falência do direito moderno perante o antiquíssimo senso comum. E, então, caso se queira transcrevê-lo juridicamente, já não será possível — a menos que se admita novamente a religião.
A lei só cumpre a função social…
A lei só cumpre a função social pela qual se justifica quando é expressão jurídica do senso comum. A partir do momento em que se precisa recorrer a um especialista para conhecê-la, ou melhor, a partir do momento em que se torna conhecimento especializado, distante, e não universalmente apreendido por óbvio, a lei perde a função social e torna-se mero meio de opressão por parte daqueles que detêm o poder de aplicá-la ou se beneficiam de sua aplicação.